Pensata

Hélio Schwartsman

03/10/2007

República dos bacharéis

Como estou sem assunto, hoje vou falar mal de advogados. Tenho o privilégio de dar-me com excelentes profissionais dessa bonita carreira, mas isso não me impede de acusar os arroubos corporativistas da categoria, que tanto mal causam ao país.

Um exemplo recente dá bem a idéia do que quero dizer. Numa rara iniciativa elogiável, o Senado Federal aprovou no final do ano passado dispositivo que simplificava as separações consensuais de casais sem filhos menores, dispensando-as de passar pelo crivo do Judiciário. Bastaria um registro público em cartório para consolidar a dissolução do matrimônio. (Podemos é claro nos perguntar por que diabos alguns ainda insistem em informar o Estado de que pretendem viver juntos, mas essa é uma outra questão). Era uma medida desburocratizante, simplificadora e que ainda contribuiria para aliviar a enorme carga de processos que atola a Justiça brasileira. Foi, portanto, rapidamente deturpada.

Por intermédio do deputado e advogado Maurício Rands (PT-PE), a república dos bacharéis conseguiu introduzir uma emenda que obrigou as partes a contratarem os serviços de um advogado. Com isso, a separação se tornou um pouco menos simples e mais cara. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva não teve a coragem de vetar essa excrescência, de modo que o projeto acabou sendo aprovado com a alteração ditada pelo lobby da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). No mínimo, a norma viola o princípio da razão suficiente: se não é necessário consultar um advogado para casar-se, tampouco deve ser obrigatório ouvir um na hora de dissolver a união por comum acordo. Mas é melhor eu parar antes que alguém tenha a idéia de fazer uma lei tornando necessária a presença de advogados em altares e dosséis.

Parece brincadeira, mas não é. Entre outras maldades que a OAB já tentou impingir ao cidadão está a necessidade de constituir advogado até para ir aos tribunais de pequenas causas e juizados especiais. O golpe constava do Estatuto do Advogado, a lei nº 8.906/94, bolada pela ordem e sancionada pelo Congresso Nacional. Só não se converteu em realidade porque, na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.127, movida pela Associação dos Magistrados do Brasil, o Supremo Tribunal Federal considerou nulo o dispositivo legal que tornava privativo de advogados "a postulação a qualquer órgão do Poder Judiciário e aos juizados especiais" (art. 1º, I). A expressão "qualquer" é que foi julgada inconstitucional. Ou seja, não foi uma vitória completa, pois continua havendo instâncias em que o cidadão não pode representar a si mesmo, sendo legalmente compelido a procurar um advogado. A dispensa do profissional só vale em juizados especiais, na Justiça do Trabalho e em ações de "habeas corpus".

Não me entendam mal. Acredito no velho ditado segundo o qual "a man who is his own lawyer has a fool for a client" (o homem que advoga por si próprio tem um tolo por cliente). Quero, entretanto, ter o direito de fazê-lo, ainda que não pretenda exercer tal prerrogativa. O que está em jogo aqui são os próprios pressupostos da República. É absurda a idéia de que eu possa escolher, pelo voto, as principais autoridades do Executivo e os membros do Parlamento, que escreverão e aplicarão as leis do país, mas seja considerado incapaz de representar apenas a mim mesmo diante de um juiz. Pior ainda é que isso ocorra por força de pressões escancaradamente corporativistas de uma associação profissional.

De resto, todo o pleito da OAB repousa sobre uma base logicamente frágil. O que a Constituição diz em seu artigo 133 é que o advogado é "indispensável à administração da justiça". Eu próprio concordo com a assertiva. Não sou capaz de vislumbrar um sistema judiciário no qual inexistam advogados. Mas isso de maneira alguma implica que eles devam ser onipresentes. A própria Carta é explícita ao afirmar que todos --o que inclui menores de 18 anos e estrangeiros--, têm o direito de peticionar "em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder" (art. 5º, XXXIV). A doutrina corrente limita o escopo dessa injunção ao "habeas corpus". De minha parte, considero que qualquer ação judicial tem a ver a com a defesa de direitos.

Também se chega à mesma conclusão pela via do absurdo. Um cidadão pode, com base no Código do Consumidor, recusar um por um todos os advogados que lhe sejam apresentados. Ora, se esse putativo indivíduo for levado a julgamento e não puder representar-se, terá prejudicado seu amplo direito à defesa, hipótese que a Constituição não admite. A possibilidade de auto-representação mesmo em ações penais torna-se assim, "ex fortiori", uma necessidade lógica.

Diga-se em favor dos advogados que colocar os interesses da categoria à frente dos da população não é exclusividade sua. Na mesma senda caminham notários, médicos, engenheiros, jornalistas, políticos. O problema é que, no Brasil, qualquer grupo que tenha um mínimo de organização obtém sucesso senão em todos os pleitos ao menos em parte deles. O resultado é uma miríade de leis e regulamentos que, afora atender às demandas corporativas, só servem para frustrar direitos e dificultar a vida.

Uma demonstração eloqüente dos excessos burocráticos foi dada na semana passada pelo Banco Mundial, que divulgou a versão 2008 de seu já clássico relatório "Doing Business", no qual faz o ranking dos países que oferecem melhores condições para empresários. Pela quinta vez consecutiva, o Brasil faz péssima figura. Ficou em 122º lugar entre as 178 nações avaliadas. Por aqui, abrir um negócio cobra 152 dias perdidos com procedimentos legais e correspondente papelada. Na Austrália, bastam 2. A média dos países desenvolvidos (OCDE) é de 15 dias. Só não nos saímos pior do que Congo, Guiné-Bissau, Suriname e Haiti. E isso provavelmente porque o Haiti se encontra sob ocupação de tropas brasileiras.

Hoje eu centrei fogo nos advogados, mas críticas semelhantes podem ser feitas a praticamente todas as categorias profissionais. É claro que defender interesses de classe é legítimo. Os problemas começam é quando organizações como a OAB se tornam maiores do que sindicatos --que é o que deveriam ser-- e passam a acumular poderes desproporcionais, como o de indicar juízes, escrever leis, propor ações diretas de inconstitucionalidade, definir quem pode e quem não pode tornar-se advogado. É preciso depurar o Estado das pressões corporativas que o tomam de assalto, ou ele jamais poderá atuar de forma republicana.

Errei - Na coluna da semana passada, deixei de checar no original uma informação e cometi uma injustiça. O livro didático "Nova História Crítica", que critiquei, não afirma que no socialismo "as decisões econômicas são tomadas democraticamente pelo povo trabalhador, visando ao bem-estar social". Tal definição diz respeito ao ideal marxista, jamais atingido em nenhuma experiência histórica, como esclarece quadro publicado à pág. 67 da obra. O episódio me ensina a checar mais e confiar menos em determinadas fontes, mas não me leva a mudar minha impressão geral sobre o "Nova História Crítica". Embora não seja um texto tão maluco como alguns o pintaram há até passagens interessantes, incorre em graves impropriedades historiográficas ao omitir e minimizar e com claro viés ideológico alguns dos piores morticínios do século 20.

Hélio Schwartsman é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

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