Pensata

Hélio Schwartsman

28/09/2000

Democracia, Platão e Churchill

da Folha Online

A três dias das eleições municipais, nada mais oportuno do que falar de democracia. E, sempre que se aborda um assunto importante como esse, é obrigatório conferir o que Platão tinha a dizer sobre ele. Na "República" (557a), o filósofo oferece uma pista: "A democracia se estabelece quando os pobres ("hoi pénetes"), tendo vencido seus inimigos, massacram alguns, banem os outros e partilham igualmente com os restantes o governo e as magistraturas".

É verdade, sou obrigado a admitir, Platão não era exatamente um democrata. Na verdade, ele não gostava nem um pouco da democracia. Há outras passagens da "República" em que ele a compara à escravidão (563d) e os democratas, a feras excitadas (559d). Mais referências desabonadoras se multiplicam em outros textos. Por republicana pudicícia, recuso-me a reproduzi-las.

Se queremos salvar a nossa democracia das críticas de Platão, precisamos, antes de mais nada, saber se estamos falando da mesma coisa.

Ora, a democracia brasileira não se assemelha muito à descrição do filósofo. Parece um exagero afirmar que, no Brasil, os pobres tenham chegado ao poder e massacrado alguns. É provável que o nosso problema resida justamente nessa passividade. Em termos platônicos, estaríamos numa oligarquia, o regime em que, para falar bom português, o dinheiro manda (555b).

Mas o que era a democracia ateniense, que Platão tanto detestava? A Atenas do século 5º a.C. contava com 500 mil habitantes, dos quais 300 mil eram escravos. Da população de 200 mil pessoas livres, é preciso ainda descontar as mulheres, as crianças e os estrangeiros. Assim, ficamos com 40 mil cidadãos, aos quais era dado exercer a democracia, e 460 mil que tinham muito poucos direitos. Chamamos a democracia grega de democracia mais para prestar tributo a uma herança espiritual do que por adequação do exemplo ao conceito.

Antes que o leitor se entusiasme, vejo-me mais uma vez compelido a esclarecer que Platão não criticava a democracia ateniense porque ela não era completa. Ao contrário até, ela a rechaçava porque gente demais exercia o poder. Para ele, a oligarquia era preferível à democracia, regime no qual desiguais são tratados como iguais, o que costuma gerar uma série de dificuldades. O povo pode, por exemplo, ser facilmente manipulado por demagogos, idéia que era odiosa para o filósofo.

Em termos mais gerais, o que Platão recrimina à democracia, e em maior ou menor grau a todos os regimes políticos então conhecidos, é o fato de não estar de acordo com a sua filosofia. A República platônica seria melhor do que os outros porque nela, sob a direção de filósofos, cada cidadão desempenha as tarefas que estão de acordo com sua natureza. É um sistema que reproduz com mais fidelidade o mundo das essências. Se o estudante estudar, o professor professar, o ferreiro ferrar e o Geraldinho prefeitar, cada um deles será mais feliz. Platão não está em busca de uma eficiência capitalista, mas, como em toda utopia, da felicidade individual e coletiva.

O filósofo-rei escapa à acusação de tirano porque contemplou o Bem e, portanto, faz o que é melhor para todos. Numa palavra, o filósofo-rei, por definição, não erra.

Tenho a impressão de que o presidente Fernando Henrique Cardoso e os tucanos em geral gostam das páginas em que Platão descreve a cidade perfeita, principalmente as passagens em que ele explica por que os iluminados têm o dever de mandar, por maior que seja a quota de sacrifício pessoal necessária para essa tarefa.

É triste dizê-lo, mas Platão estava errado. Era raro acontecer, mas acontecia. Desconfio de que o próprio Platão sabia que havia um problema com sua teoria, pelo menos depois do fracasso que foi a tentativa de implantação de seu sistema em Siracusa, na Sicília. De qualquer forma, o filósofo jamais renunciou à viabilidade de suas idéias, embora sempre tenha sido extremamente pessimista com a política.

Hoje, não louvamos a democracia por absconsas virtudes políticas, mas apenas por ser o sistema que melhor resiste à tirania, que, mesmo para Platão, era o pior dos males. Até Fujimori, em seu simulacro de democracia, aparentemente está se retirando, e por força de um escândalo que maculou, por paradoxal que seja, a aparência democrática de seu regime.

A grande vantagem de Platão é que ele, até quando erra, tem algo a ensinar. Embora seu prognóstico tenha se revelado falho, algumas das críticas que ele faz à democracia permanecem válidas. A possibilidade de manipular as massas continua sendo um desafio ao regime democrático ideal. Na véspera de uma eleição, tudo pode ocorrer. FHC pode mandar pagar o FGTS a todos os trabalhadores. Clinton pode usar as reservas estratégicas de petróleo dos EUA para dar gasolina barata ao povo. O risco sempre existe e é considerável. Basta lembrar que Hitler surgiu da Weimar democrática.

Nada impede, porém, que o sistema seja aprimorado. Talvez nem tanto como na vigorosa democracia iugoslava, em que os dois lados em disputa podem proclamar a vitória, mas certamente dá para melhorar um bocadinho.

Uma crítica moderna às democracias é o seu caráter representativo e não direto. Parte da legitimidade se perderia na intermediação por políticos profissionais. Ora, com o advento da Internet, o obstáculo prático à democracia direta está tecnicamente superado. É perfeitamente possível que o cidadão, enquanto toma o seu café da manhã, vote em projetos que lhe sejam apresentados pela rede. É claro que os atuais parlamentares dificilmente abrirão mão de seu poder, e o acesso restrito a computadores tende a agravar o caráter censitário da oligodemocracia brasileira. De todo modo essa é uma idéia que, com o tempo, tende a ganhar força e viabilidade.

Afastar definitivamente o demagogo é uma impossibilidade, porque implicaria ter a capacidade de perscrutar a alma humana. E será que um demagogo bem-intencionado, hipótese em que já nem seria mais um demagogo, é menos daninho do que um com interesses inconfessáveis? Não acredito muito.

Enfim, valem as palavras de Churchill: "Ninguém pretende que a democracia seja perfeita ou sem defeito. Tem-se dito que a democracia é a pior forma de governo, salvo todas as demais formas que têm sido experimentadas de tempos em tempos".

Hélio Schwartsman é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

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