Pensata

Hélio Schwartsman

21/09/2000

Todos os "bugs" do mundo

da Folha Online

"O Criador, se Ele existe, tem uma predileção desmesurada por besouros". A frase é do biólogo escocês John Burdon Sanderson Haldane (1892-1964) e foi muito oportunamente lembrada pelo Marcelo Leite em recente texto na Folha. O artigo era um comentário a uma pesquisa sueca que traz pistas para entender a diversidade dos besouros (insetos da ordem dos coleópteros).

O chiste de Haldane também serve de glosa à incrível exabundância besoural. Já foram descritas umas 400 mil espécies de coleópteros e deve haver muito mais.

Excluídos fungos, bactérias e seres unicelulares em geral, já foram catalogadas 1,82 milhão de espécies animais e vegetais. Desse total, 57% são insetos, e os besouros respondem por quase a metade de todos os tipos de insetos. Isso dá algo como 25% das espécies animais e vegetais do planeta.

E nós apenas engatinhamos na identificação dos seres vivos. As estimativas sobre o número de categorias de animais e vegetais na Terra variam de 3,5 milhões a 150 milhões. Extrapolando, na hipótese mais exuberante pode haver a bagatela de 37,5 milhões de espécies de besouros na natureza. Para efeitos de comparação, toda a classe dos mamíferos conta com 8.000 espécies, a da aves, 9.000. Ambas as classes já estão quase totalmente catalogadas, o que não ocorre com os besouros. Mais detalhes sobre essa contabilidade podem ser encontrados no delicioso "Dinossauro no Palheiro", de Stephen Jay Gould (p. 452 e ss.).

Diante de tamanha superabundância coleóptera, não parece exagero traduzir a predileção divina por esse tipo de artrópode em termos de um verdadeiro transtorno obsessivo-compulsivo, cuja sintomatologia costuma evoluir bem com a administração de drogas da classe dos inibidores seletivos da recaptação da serotonina, o popular Prozac.

Antes, porém, de medicar o Criador, convém examinar melhor de que diabos estamos falando.

Muito bem, 37,5 milhões de espécies de besouro parece um exagero até para Ele, que sempre teve pendores hiperbólicos. Mas o que é uma espécie? Os dicionários costumam trazer algo como "conjunto de indivíduos muito semelhantes entre si e aos ancestrais, e que se entrecruzam". Embora já esteja implícito, vale ressaltar que indivíduos da mesma espécie, nas cálidas noites de amor, geram indivíduos semelhantes e férteis, ou seja, capazes de, por sua vez, reproduzir. Essa fertilidade do rebento é o principal critério para a definição de espécie.

É claro que, na prática, não é bem assim. Entomologistas não são alcoviteiros que testem continuamente a capacidade dos artrópodes de gerar indivíduos férteis. São caracteres morfológicos que acabam definindo a que categoria cada exemplar pertence. Por mais objetiva que se pretenda a ciência, há aqui uma boa dose de antropocentrismo, pois os caracteres distintivos ficam limitados à capacidade humana de percebê-los. De qualquer forma, duvido muito que os besouros se importem muito com o nome e sobrenome latinos que os cientistas lhes dão. Eles devem estar mais interessados é nos enlevos carnais com a companheiras.

E o problema da espécie nos remete a um outro, mais espinhoso, que é o da definição de ser vivo. Aqui os dicionários não são de grande utilidade. Eles trazem versões variadas da definição fisiológica, pela qual um ser vivo é "um sistema capaz de desempenhar funções como alimentar-se, metabolizar, excretar, respirar, mover-se, crescer, reproduzir-se e responder a estímulos externos".

Essa definição é problemática porque exclui muitos seres que estamos dispostos a chamar de vivos, como as diversas bactérias que não respiram, obtendo energia por outros processos como a fermentação ou a oxidação do enxofre. Se concordarmos em não exigir a realização da totalidade das funções acima descritas, corremos um outro risco, talvez mais grave. Um carro, por exemplo, só não cresce nem se reproduz, mas se desincumbe das demais atividades. Um vírus de computador teria até a capacidade de crescer e reproduzir-se.

Os cientistas, que são sujeitos espertos, perceberam o problema e propuseram outras definições. Utilizo-me agora da indispensável "Britannica". A definição metabólica descreve como sistema vivo o "objeto com limite definido capaz de trocar materiais com o meio sem alterar, por algum tempo, suas propriedades originais". Aqui, alguns esporos capazes de permanecer dormentes por milhares de anos desafiam a definição. Numa leitura rigorosa, a chama de uma vela também poderia ser considerada viva.

Os bioquímicos apelaram para o DNA/RNA, mas, de novo, surgiram problemas. O agente infeccioso causador de algumas moléstias neurológicas fatais como a doença da vaca louca e a encefalopatia espongiforme humana é presumivelmente o príon, uma simples proteína auto-replicável, mas sem nenhum material genético tradicional (DNA/RNA).

Menos de 150 anos depois de Pasteur, hoje temos dificuldade de conceber uma moléstia infecciosa que não seja causada por um ser vivo, em que pese a estéril polêmica sobre se um vírus é ou não um ser vivo. A principal objeção a conceder-lhe estatuto de vivente é o fato de ele não ser capaz de reproduzir-se por conta própria, necessitando de uma célula hospedeira. Por algumas definições ele será vivo, por outras, não.

Os cientistas, além de espertos, são teimosos e obviamente não se deram por vencidos. Criaram outras definições de vida, inclusive uma termodinâmica (veja no link da "Britannica"). O problema é que, nesse nível, os critérios colocados se tornam tão complexos que a própria idéia de definição já não sobrevive. Quando o homem de ciência se vê obrigado a buscar o auxílio da entropia do Universo para provar que um besouro é um ser vivo, nós num certo sentido já não estamos mais "descrevendo os atributos essenciais e específicos", ou seja, passamos ao largo da própria definição de definição.

Ao que tudo indica, essa necessidade humana de encontrar definições, mesmo que inúteis, para as coisas é mais um "bug" que o Criador colocou na programação do homem. Definitivamente, a predileção dEle por insetos tem um quê de patológico.

Hélio Schwartsman é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

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