Pensata

Hélio Schwartsman

17/08/2000

Liquidando o português

da Folha Online

Hoje comento a bobagem sem tamanho que é o projeto de lei do deputado Aldo Rebelo (PC do B-SP) com vistas a banir os estrangeirismos do português. É simplesmente impossível fazer com que as pessoas tenham bom gosto por decreto.

Se um gerente de loja de shopping center considera uma "sale" melhor do que uma liquidação e o consumidor julga que 50% "off" é mais vantajoso do que um desconto de 50%, o máximo que se pode fazer é lamentar. Tentar impor formas vernáculas por lei e ameaçar os infratores com multas, "sem prejuízo das sanções de natureza civil e penal", beira o delírio.

A melhor analogia que me vem à mente é a do revolucionário de "Bananas", de Woody Allen, que, logo depois de chegar ao poder, entra em surto psicótico e cito de memória baixa norma determinando que todos os cidadãos troquem suas roupas íntimas quatro vezes por dia. Para facilitar a fiscalização, as pessoas ficam obrigadas a usar as cuecas e calcinhas por cima das vestes.

Sandices à parte, é real o fato de que o inglês é hoje o idioma dominante no mundo e exerce forte influência sobre o português. O latim também já foi chamado de língua universal; o grego ocupou posição semelhante no tempo dos escolarcas; e o francês, como idioma das cortes e da diplomacia entre os séculos 17 e 19. Mas a prevalência do inglês parece ser ainda superior, porque ele não se limita a um papel de veículo de alta cultura. Ele serve também para a comunicação entre pessoas comuns nas mais diversas partes do mundo. Pelos cálculos mais modestos, 400 milhões o têm como língua materna; 300 milhões, como segundo idioma; e mais 300 milhões o utilizam como língua veicular para negócios e cultura. Apenas o chinês, sem considerar a questão dialetal, o excede em número de falantes.

É evidente que tamanho sucesso se deve principalmente ao predomínio econômico, primeiro da Grã-Bretanha, e depois dos EUA. Muitos autores citam também a "simplicidade" do idioma. Esse é um conceito de que não gosto. Em muitos aspectos, o inglês nada tem de simples. É fato, contudo, que, se os ingleses e por consequência os americanos falassem basco (que tem centenas de formas verbais) ou húngaro (com até 18 casos de declinação), sua língua não teria a mesma penetração, não importando a força de suas economias.

E nada na origem do inglês permite antever essa vocação universalista. Muito pelo contrário. A primeira fase do idioma, conhecida como inglês antigo, tem início na metade do século 5º, quando tribos germânicas (anglos, saxões e jutos) invadiram a Grã-Bretanha. A língua por eles falada se parecia muito mais com o atual alemão do que com o inglês moderno. Substantivos e adjetivos declinavam e, como em alemão ou latim, as palavras pertenciam a um dos três gêneros gramaticais (masculino, feminino ou neutro), nem sempre evidentes. Os termos "wîf" (hoje "wife", "esposa") e "moegden" ("maiden", "moça"), por exemplo, eram neutros. Mas já nessa fase o inglês começa a perder as flexões indicativas de caso e gênero.

O segundo período do idioma, o inglês médio, começa em 1066, quando os normandos aportam em Pevensey e dão início à conquista da ilha. Embora os normandos também fossem uma tribo germânica, eles falavam basicamente o francês, ou franco-normando. Não só mantiveram sua língua como ainda cooptaram a nobreza anglo-saxã, que passou a utilizar o franco-normando. Como o clero se valia principalmente do latim, o inglês tornou-se uma língua do povo, basicamente de camponeses. Nesse período, o sistema verbal sofre uma simplificação semelhante à que já ocorrera com os substantivos.

Palavras francesas entram em massa para o léxico, mas não escondem a divisão social. O animal boi se chama "ox", termo germânico, mas a carne do boi destinada ao consumo da nobreza leva o nome de "beef", de origem francesa. O mesmo se dá com "calf" e "veal" ("novilho"/"vitela").

Em 1362, com o "Statute of Pleading", o inglês passa a ser a língua oficial dos tribunais. No mesmo ano, pela primeira vez, o Parlamento faz uma sessão em inglês. A partir de 1500, o idioma já é considerado inglês moderno.

Em contraste com a simplificação nos sistemas nominal e verbal, o inglês conserva uma ortografia etimológica complicada, arcaica e pouco fonética. Mark Twain propôs que a palavra "fish" ("peixe") fosse escrita "ghotiugh", em que o "gh" soa como "f", como ocorre em "enough" ("bastante"); o "o" tem som de "i", como em "women" ("mulheres"); o grupo "ti" vale por "ch", como em "nation" ("nação"); e o grupo "ugh" não tem som algum, como em "ought" ("dever"). Há uma variante do chiste atribuída a Bernard Shaw. O problema é real. O inglês tem pelo menos 21 sons vocálicos, mas o alfabeto latino só possui cinco vogais (seis com o "y"). E o inglês não usa nenhum acento gráfico (diacrítico) para diferenciá-las.

Mas a dialética encerra mistérios. A dificuldade ortográfica aliada ao despojamento dos sistemas nominal e verbal trouxe uma vantagem insuspeitada. Como as palavras podem ser escritas de qualquer jeito mesmo e substantivos se tornam verbos sem a necessidade de nenhuma adequação morfológica em português, para tornar-se verbo, é preciso obedecer à flexão, recebendo, por exemplo, um "r" no infinitivo, como em "amar", a língua ganha uma enorme versatilidade. Praticamente qualquer palavra estrangeira pode ser assimilada em sua forma original. Nenhum termo fica estranho demais para "ser" inglês. Mais do que isso, pode tornar-se, além de um simples nome, também um verbo. É o caso, por exemplo, de "toboggan" ("tobogã" e também "fazer tobogã") que veio do idioma algonquino "ipsis litteris".

Não é à toa que o inglês é, de longe, a língua de maior vocabulário do mundo, excedendo 1 milhão de palavras. O português, também uma língua bastante extensa, tem algo em torno de 400 mil vocábulos. Vale lembrar que a grande maioria é de palavras empregadas apenas nas ciências. Um grego clássico extremamente pedante dificilmente conseguiria utilizar mais de 5.000. Na comunicação do dia-a-dia, 3.000 termos dão bem conta do recado.

Assim, se me fosse dado o poder discricionário de decidir o que deve acontecer com a língua, eu importaria ainda mais estrangeirismos, de todos os idiomas. Estou convicto de que as novidades trazem força criativa para a língua, seja pela assimilação de barbarismos úteis, seja pelo surgimento de termos castiços para combatê-los. Foi para evitar o uso do galicismo "galocha" que nasceu a bela e confortável "anidropodoteca". O mesmo vale para o "ludopédio" contra o menos nacional "futebol".

Como a sociedade ainda conserva alguma sanidade, não me foi dado esse poder.

Hélio Schwartsman é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

FolhaShop

Digite produto
ou marca