Pensata

Hélio Schwartsman

08/05/2003

Os acadêmicos

Ian e David, meus filhos gêmeos de um ano e dois meses, começaram sua vida acadêmica. Desde a semana passada eles estão na escola, não um simples berçário ou um hotelzinho, mas uma escola mesmo, na qual o etimologista vai identificar o termo grego "scholé", que significa primariamente "ócio", "tempo livre", mas também "estudo", "aula" e, finalmente, "escola".

Para dissolver o paradoxo, precisamos tentar entender melhor como os gregos viam o ócio, a "scholé". Aristóteles, na "Política" (livro VIII, parte III), escreveu: "O primeiro princípio de toda ação é o ócio. Ambos (ação e ócio) são necessários, mas o ócio é melhor do que a ocupação e é o fim em razão do qual esta existe".

Tanto para os gregos como mais tarde para os latinos, o ócio é o valor positivo. Não deve ser entendido como uma inatividade embora possa também sê-lo, mas sim como o tempo que alguém gasta em seu próprio interesse. Não é surpreendente, portanto, que "scholé" esteja na raiz da palavra "escola".

O termo negativo, "ascholía" em que o prefixo "a" indica privação tem o sentido de "ocupação" e também o de "dificuldade". O mesmo raciocínio pode ser aplicado ao termo latino "otium". Acrescido do prefixo negativo "nec", forma a palavra "negotium". "Dedicar-se aos negócios" é, portanto, tudo aquilo que os antigos cuidavam de evitar.

Filósofos como o alemão Josef Pieper (1904-1997) foram ainda mais longe, a ponto de afirmar que o lazer, o ócio, ao inaugurar a reflexão filosófica, é o fundamento da cultura.

Voltando aos gêmeos, eles iniciam agora sua aventura pelo mundo da cultura. Vão passar espero os próximos vinte e tantos anos dedicando seu tempo sua "scholé" a si mesmos, à sua formação intelectual. Após esse período, em que serão de alguma forma moldados pela sociedade, estarão aptos a dar seus próprios passos nas carreiras que escolherem, podendo eventualmente deixar marcas na sociedade que os conformou.

E já que inopinadamente recaí em corujice, dou-lhe agora rédeas soltas e admito que foi emocionante enfiá-los em seus uniformezinhos, atrelar-lhes as lancheiras e levá-los à escola. A tal da adaptação até permitiu que eu os observasse, meio que camuflado, por algum tempo.

Foi engraçado vê-los interagir com as outras crianças, enfiar os dedinhos nos olhinhos dos coleguinhas, comer os lápis de cera ou aterrorizar as tartaruguinhas que são mantidas como mascotes. Por razões que talvez a psicobiologia explique, essas e outras gracinhas têm o dom de enternecer pais. Também pude perceber, ao ver as professoras lidando com os alunos mais "antigos", que os pestinhas acabarão sendo disciplinados.

Nestes primeiros dias, os gêmeos gozam de alguns privilégios. Além da prerrogativa de ter o pai ou a mãe por perto, eles só fazem o que bem entendem. Podem brincar com os carrinhos enquanto o resto da classe faz educação física ou roubar o lanche dos coleguinhas sem sofrer duras reprimendas. A festa, evidentemente, não vai durar para sempre. Eles serão paulatinamente integrados ao resto do grupo e perderão suas imunidades.

Não posso dizer que eu lamente muito. É claro que seria muito mais divertido gozar do ócio em sua plenitude, mas não vivemos entre os gregos. Em minha pedagogia selvagem, sou daqueles que acreditam que civilizar é ir traumatizando aos poucos. E os garotos precisam urgentemente sofrer alguns traumas, em especial aqueles que fazem com que crianças recalcitrantes deixem de estragar a biblioteca dos pais. Se não fizermos nada quanto a isso, eles poderão tornar-se pequenos George W. Bushes, um peso que eu prefiro não carregar.

Apesar de o processo civilizatório ser desejável, ele deixa sequelas que podemos e devemos lastimar. De algum modo, Ian e David vão perder sua "inocência". Não falo daquela inocência dos livros infantis, mas de uma outra, mais primordial. Encanta-me, por exemplo, o idealismo radical dos meninos. Como toda criança, eles adoram brincar de desaparecer simplesmente escondendo o rosto. É como se o que eles não vissem simplesmente não existisse. E cada vez que eles caem na gargalhada depois de revelar suas faces, vem-me à mente as idéias do pensador irlandês George Berkeley (1685-1753), cuja filosofia pode ser resumida no lema "esse est percipere et percipi" (ser é perceber e ser percebido). Embora esse princípio não fosse exatamente uma novidade no século 18, Berkeley o levou ao paroxismo, propondo um idealismo tão radical a ponto de postular que as coisas deixam de ser quando fechamos nossos olhos.

Não pretendo, é claro, que Ian e David se tornem idealistas furiosos ou brinquem de esconder e achar para sempre, mas, ao serem domesticados pela cultura vigente, eles acabam sucumbindo aos modismos conceituais de nosso tempo e sendo dessensibilizados para outras possibilidades. Não sou, evidentemente, um idealista berkeliano, mas não creio tampouco que devamos sucumbir ao realismo materialista tacanho tão característico de nossa época. OK, as coisas existem independentemente de nossas mentes, mas isso não significa que nós possamos percebê-las como elas de fato são. Muito pelo contrário, desde Kant sabemos que somos prisioneiros de nosso psiquismo, de nossas estruturas de pensamento. As coisas como elas são, as coisas em si, para usar o jargão kantiano, são-nos inapreensíveis. Tudo o que podemos perceber é o fenômeno, que acaba sendo uma interação entre a coisa e o o sujeito, entre o que é e o nosso modo de percebê-lo.

Essas noções que eu acabo de descrever muito sumariamente são bem conhecidas da filosofia, mas, infelizmente, não entraram para o patrimônio das idéias comuns de nosso tempo, que tende a rejeitar reflexões mais sutis. Todas as épocas carregam consigo seus preconceitos, e tentar superá-los é tarefa daqueles que procuram "pensar direito".

É nessa trilha da reflexão livre, metódica e temperada pela dúvida sistemática que eu espero que Ian e David estejam se iniciando. É um processo que encerra muitos mistérios. Apesar de eu acreditar em algumas das idéias dos grandes pedagogos, como Pestalozzi, Rousseau e Piaget, de achar que a criança precisa ser deixada livre para descobrir o mundo e encontrar seus próprios problemas, caminhos e soluções, confesso que jamais entenderei o que pode haver de pedagógico em destruir livros ou atacar tartaruguinhas indefesas.

Hélio Schwartsman é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

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