Pensata

Hélio Schwartsman

16/10/2003

A morte

Diz a sabedoria popular que só temos uma certeza na vida: a de que vamos um dia morrer. Para sermos rigorosos, nem isso. Em termos estritamente lógicos, não podemos generalizar induções. Não é porque não encontramos até hoje nenhum homem imortal que eles não existem. Como afirmava David Hume, não é porque o sol nasceu todos os dias até hoje que ele necessariamente vai nascer amanhã.

Já começo, contudo, me perdendo. Meu plano aqui não era problematizar a indução ou a lógica, mas apenas falar da morte. Mais especificamente, pretendia comentar a notícia, levantada por meu amigo Mauricio Tuffani, de que o Ministério Público Federal instou o Conselho Federal de Medicina (CFM) a explicar a segurança de um procedimento usado para diagnosticar a morte encefálica. A procuradoria quer que o CFM justifique o teste da apnéia, que consiste em desligar, por dez minutos, os respiradores que mantêm ventilado o paciente em coma profundo. Se ele não esboçar nenhuma reação, é porque está de fato morto. Há autores sérios a afirmar que esse procedimento pode levar a óbito um indivíduo ainda com chances de recuperação.

O teste é sem dúvida grosseiro, mas, antes de condenar toda a medicina como a arte da carniçaria, é preciso reconhecer que as noções de vida e morte são muito mais complexas do que nos acostumamos a acreditar. Por estranho que pareça, o diagnóstico de morte pode ser um dos mais difíceis.

Como já perpetrei uma coluna em que tratei da dificuldade de definir a vida, permito-me agora fixar-me na morte. Num passado nem tão remoto, procurar complicar a noção de morte era principalmente um assunto para filósofos e biólogos que não tinham nada de melhor para fazer. Para os sempre mais respeitáveis médicos e advogados, alguém estava morto a partir do momento em que o seu sistema cardiorrespiratório parava de funcionar.

Essa definição nunca foi boa, mas dava mais ou menos conta dos problemas práticos que a morte ocasiona. Se quisermos uma definição filosófica e cientificamente um pouco menos inconsistente, precisamos voltar um pouco para trás e tentar entender o que ocorre quando as células de um indivíduo deixam de receber seu suprimento de oxigênio e nutrientes. É evidente que nem todas elas sofrem os mesmos efeitos ao mesmo tempo. Até três horas depois da assistolia (parada cardíaca) irreversível, por exemplo, as pupilas e os músculos ainda reagirão a certos estímulos. Enxertos de pele poderão ser retirados do corpo até 24 horas depois da cessação dos batimentos cardíacos. As células ósseas mantêm-se boas para transplantes por até 48 horas. No caso de veias e artérias, 72 horas.

É claro que não precisamos esperar todo esse tempo --ou até mais, dependendo das condições ambientais-- para proclamar alguém morto. A morte é muito mais um processo do que um evento. O primeiro erro em que poderíamos incorrer seria o de confundir o indivíduo (e sua morte) com o conjunto de suas células. Aqui, a soma das partes não define o todo. Em organismos multicelulares complexos, a destruição de certas células (a morte da parte) é indissociável do processo vital. O mais sadio dos indivíduos perde milhões de células todos os dias. Mais ainda, se não fosse pela apoptose, a destruição programada de determinadas células e grupos de células, embriões humanos não se desenvolveriam normalmente, nascendo, por exemplo, com rabo e guelras.

Na busca por uma definição de morte, parece mais útil, portanto, nos centrarmos no indivíduo e não na totalidade de suas células. Modernamente, não temos muitas dúvidas de que a individualidade de uma pessoa reside no cérebro, em sua personalidade, memórias, sentimentos. Embora essas características de fato sejam a marca da singularidade da maioria dos seres humanos durante a maior parte de suas vidas, não poderíamos transformá-las em critérios distintivos de vida sem incorrer em graves infrações éticas.

Com efeito, uma pessoa que por um acidente ou moléstia quaisquer se veja privada de suas memórias não deixa de ser um ser humano e, enquanto tal, gozar dos direitos de proteção à vida. Deixar de reconhecer a humanidade num deficiente ou num paciente em coma um pouco mais profundo é certamente um crime que não podemos admitir.

Se quisermos complicar um pouco mais a discussão, poderíamos, como fez o papa Pio 12 ao falar num congresso de anestesistas em 1957, perguntar a que altura a alma abandona o corpo de um paciente morrendo numa unidade de terapia intensiva. Poupo, pelo menos por hoje, o leitor da intricada questão anímica.

O problema é que, devido ao próprio avanço da medicina, a velha definição de morte como cessação dos batimentos cardíacos, que durante tanto tempo serviu bem aos médicos, já não presta mais. Desde 3 de dezembro de 1967, quando Christian Barnard realizou o primeiro transplante cardíaco, precisamos admitir a possibilidade de que pessoas possam ser consideradas legalmente mortas --e assim candidatas à doação de órgãos-- mesmo enquanto seus corações estão batendo.

Órgãos como coração, fígado, rins, para serem reaproveitados em transplantes, precisam ser retirados com tempos mínimos de isquemia. É assim que, a partir de 1968, o conceito de morte encefálica começa a ser reconhecido e construído, ainda que talvez excessivamente "ad hoc", deve-se reconhecer.

Atualmente, a maioria dos países trabalha com a noção de morte encefálica. A idéia aqui é que existe um ponto a partir do qual a destruição das células do tronco cerebral é de tal ordem que o indivíduo, ainda que submetido a suporte ventilatório e cardíaco, não teria mais como recuperar-se, evoluindo necessariamente para o óbito. Pessoalmente, eu concordo com essa tese, mas é forçoso admitir que ela é epistemologicamente problemática. Só saberíamos se a morte é de fato inevitável se esperássemos o paciente morrer, o que não podemos fazer se a nossa meta é utilizar seus órgãos em transplantes. A questão é que, embora falemos em "diagnóstico" de morte encefálica, na verdade estamos fazendo um "prognóstico", o qual é, por definição, precário e sujeito a intercorrências. Talvez eu esteja sendo meio radical, mas, para sermos rigorosos, só quem faz diagnósticos em medicina é o legista, e, mesmo assim, nem sempre. Todos os demais médicos trabalham apenas com prognósticos.

Se, nesse ponto, partíssemos para uma aplicação mecânica dos princípios legais, nos veríamos forçados a banir os transplantes de órgãos vitais não-duplicados, pois jamais podemos ter a certeza (no sentido forte) de que o doador estava de fato irrecuperavelmente morto antes de ter seus órgãos retirados. Com efeito, o teste da apnéia que motivou o Ministério Público a perquirir o CFM é apenas o mais grosseiro --ainda que eficiente-- dos exames utilizados para tentar estabelecer uma morte encefálica.

Em teoria, é possível --na verdade, jamais saberemos-- que pacientes "recuperáveis" tenham sido encaminhados para a doação. Essa suspeita é tanto mais razoável quando se considera que a própria neurologia é objeto de constantes avanços terapêuticos. Isso deveria bastar para desistirmos dos transplantes? Se olharmos a questão exclusivamente do ponto de vista do paciente-doador, podemos ficar tentados a concluir que sim. Em termos de saúde pública, porém, a resposta deve ser negativa. Pelo menos nos países democráticos, se houve casos de morte involuntariamente provocada, eles parecem ser estatisticamente insignificantes. Não se comparariam numericamente às vidas salvas por transplantes. A discussão não é muito diferente da das campanhas obrigatórias de vacinação. Estatisticamente, sempre haverá um número reduzido de crianças que morre em consequência de efeitos colaterais da vacina ou de choque anafilático. O mundo, contudo, deve agradecer, e muito, ao advento das vacinas. Elas estão, ao lado dos antibióticos, entre as medidas sanitárias que, isoladamente, maior repercussão tiveram --e para grande parte da humanidade, não apenas para os ricos como normalmente ocorre.

Voltando à questão ética, acredito que o CFM deveria ter a maturidade e a humildade para reconhecer que trabalha com conceitos e definições fluidos e mutáveis. Eventualmente, poderia admitir rever pontos de seu protocolo de morte encefálica, que, em minha opinião, se sustenta mesmo sem o caráter de verdade revelada. Em termos práticos, o teste da apnéia poderia ser redefinido ou ministrado apenas depois do consentimento informado da família. Compreendo, porém, que o Conselho relute em fazê-lo. A simples sugestão --às vezes apenas o boato-- de que pacientes ainda vivos estão tendo seus órgãos retirados já basta para tornar ainda mais magra a já minguada lista de doadores. Nesses casos, contudo, pelo menos no longo prazo, a honestidade intelectual costuma ser a melhor política.

Se há uma diferença fundamental entre o método científico, que a medicina desde o século 20 pretende abraçar, e os postulados de fé, é que o primeiro tem por norma reconhecer suas limitações e prever sua própria correção. Apenas as igrejas proclamam possuir verdades eternas.

Hélio Schwartsman é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

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