Pensata

Hélio Schwartsman

23/10/2003

Paradoxos democráticos

No que é pelo menos pouco usual na Arábia Saudita, cidadãos foram às ruas para reclamar democracia. Numa atitude já mais natural, foram recebidos pela polícia a bala, cacetadas e gás lacrimogêneo. Não se deve abusar da benevolência da monarquia wahabita, que, aliás, já prometera eleições para 2004, quando os sauditas poderão escolher a metade dos vereadores de cada uma das 14 câmaras municipais do país. A outra metade dos edis será, evidentemente, indicada pelo governo.

O leitor pode ter notado uma certa ironia no parágrafo acima. Admito, vali-me desse artifício retórico condenável num texto que deveria ser jornalístico. Acabei apelando para a ironia porque ela de algum modo dá conta de minha ambivalência em relação à idéia de que a democracia deve ser um valor universal. De um lado, eu acredito mesmo que a democracia pelo menos encerra elementos que deveriam ser estendidos a toda a população do planeta, notadamente no que concerne à defesa dos direitos de minorias. De outro, já há muito passei da fase de acreditar em palavras de ordem e desenvolvi o que alguns qualificam como cinismo saudável.

Já escrevi antes sobre a pretensa universalidade da democracia, mas, agora, gostaria de centrar-me no problema dos regimes políticos de países árabes. A primeira constatação é a de que a democracia é uma ausência notável na região, apesar de muitos dos 22 países árabes serem medianamente ricos, urbanizados e industrializados, além de estarem em contato mais ou menos permanente com o Ocidente já há séculos.

A coisa é tão grave que Iasser Arafat, o presidente da Autoridade Nacional Palestina, mergulhada em toda sorte de problemas, que vão da ocupação israelense à corrupção endêmica, desponta como um dos líderes mais democráticos do mundo árabe, ou pelo menos como um dos únicos que já enfrentou eleições de verdade.

Uma explicação para o fenômeno seria dizer que a democracia não faz parte dos usos e costumes árabes --o que talvez seja verdade-- e que eles não ligam para essas bobagens --o que é falso. Até mais do que no Ocidente, dirigentes do Oriente Médio parecem comprazer-se em vencer "eleições" por incríveis maiorias. Saddam Hussein, por exemplo, depois de ter sido aprovado por 99,96% dos iraquianos em 1995, obteve, em 2002, a marca dos 100% dos votos. E tamanha vontade de vencer não pode ser creditada à lista de excentricidades do ditador iraquiano que apreciava, entre outros mimos, torneiras de ouro em seus palácios.

A coisa é bem mais geral. O presidente sírio Hafez al Assad (1971-2000) era mais modesto do que Saddam. Tinha por hábito obter sufrágios da ordem de 95%. O mesmo se verifica em países que nos acostumamos a considerar mais democráticos. Em 2002, o presidente Zin El Abidin Ben Ali, da Tunísia, ficou com 99,52%, vitória ligeiramente superior à última de Hosni Mubarak, do Egito, que conseguiu apenas 93,8% dos votos em 1999.

O recorde absoluto, contudo, não pertence a Saddam nem com seus 100%. Como relata Robert Fisk, do jornal britânico "The Independent", no longínquo ano de 1954, o ministro sírio do Interior, Mohamed Zaim, anunciou que o presidente Adib Shishakli tinha conquistado a Presidência com 104% dos votos. É claro que não colou. Os árabes sempre foram grandes matemáticos. A coisa foi tão acintosa que Shishakli mandou Zaim para o olho da rua, admitindo que o índice que obtivera havia sido de meros 99,9%. No mesmo 1954, Shishakli seria derrubado e enviado para o exílio. Acabou morrendo no Brasil dez anos depois.

Se os países árabes não constituíssem Estados democráticos apenas porque isso não faz parte de sua cultura --um argumento válido no caso de outros povos, como esquimós ou índios--, como explicar a insistência de seus dirigentes em fazer-se maciçamente consagrados em eleições fajutas? Vale lembrar que a fonte de seu poder não repousa sobre a população, mas sobre seus exércitos e, principalmente, serviços secretos, cujo trabalho sujo é concluído por eficientes polícias políticas. Receio que, aqui, nós tenhamos de nos contentar com explicações de ordem psicológica: vaidade, desejo de ser aceito e outros clichês do gênero. Essas pseudo-eleições são também uma forma --grotescamente ingênua, é verdade-- de responder às pressões de aliados ocidentais por democracia.

Seja como for, meu propósito não era o de explorar o que vai na alma de ditadores árabes, mas apenas o de esmiuçar um pouco mais a forma como nós, ocidentais, vemos a nossa democracia e tentamos "exportá-la" para outras realidades. A intenção pode ser boa, mas, como se vê nas "democracias" árabes, o risco é que o enxerto engendre mostrengos.

Devemos, então, desistir de "exportar" a democracia e nos tornar meros observadores de abusos internacionais? Se erigimos os princípios da não-interferência e do respeito à autodeterminação dos povos (que, paradoxalmente, não deixam de ser idéias democráticas) em absolutos, teríamos de tolerar tudo de qualquer louco genocida, conquanto ele não ultrapassasse as fronteiras internacionalmente aceitas.

Na prática, as coisas até funcionam um pouco assim. O mundo não fez nada substancial para deter Pol Pot no Camboja, por exemplo. Em tempos mais recentes, demorou muito para atuar no genocídio de Ruanda e nos massacres que tiveram lugar na antiga Iugoslávia. As razões para essas falhas são várias, mas, de um modo geral, elas ocorreram porque não interessou politicamente às potências hegemônicas agir na hora certa. Não é um fenômeno muito diverso do que faz com que certos dirigentes árabes insistam em suas eleições estapafúrdias. Não interessa aos EUA, por exemplo, contestar o resultado das "eleições" egípcias ou tunisianas, dois de seus aliados no Oriente Médio. E, pelo menos na cabeça de alguns dirigentes árabes, se Washington não desaprova, não parece absurdo concluir que aprova. Assim, a farsa continua.

Bem, voltando à questão central, não creio que precisemos sucumbir ao relativismo nem nos dobrar sem misericórdia à lógica da "Realpolitik". Enquanto seres pensantes, podemos nos reservar o direito de fazer uma apreciação ética "ad hoc" dos dilemas e das situações concretas que se nos apresentam.

Se alguém disser que devemos lançar nossos tanques na Amazônia para levar a democracia aos ianomâmis, teremos o dever de refutar essa idéia como estapafúrdia. Se, por outro lado, alguém nos convidar para assinar um documento em favor da democracia na China, não precisaremos hesitar muito antes de fazê-lo. Ninguém poderá nos acusar de ferir a autodeterminação do povo chinês ou não respeitar suas idiossincrasias antropológicas. Qual a diferença? Ela é sutil, admito. Mas acho razoável que cobremos democracia de uma potência econômica e militar já bastante industrializada e urbanizada, que acaba de colocar um homem em órbita juntando-se assim a um restrito clube composto pelos EUA e pela Rússia, e deixemos de fazê-lo quando se trata de comunidade pequena, ágrafa, miserável e perdida no meio da floresta.

E como ficam as situações intermediárias, que são precisamente as que interessam? Aqui não existem fórmulas. É preciso analisar caso a caso. Parece perfeitamente lícito, por exemplo, que exijamos de um dirigente como Hosni Mubarak que apresente avanços no campo da democracia. Se tivermos sucesso, ele vencerá os próximos pleitos por margens de 80%, 70%, e não mais 90%. (Já estou ficando cínico de novo). E quanto ao Afeganistão, que em muitos sentidos conserva fortes elementos tribais? Como se vê, a questão nada tem de simples.

Sempre que penso em democracia, vem-me à mente o célebre --e preciso-- comentário do estadista britânico e Winston Churchill (1874-1965), segundo o qual "a democracia é a pior forma de governo, salvo todas as demais formas que têm sido experimentadas de tempos em tempos". Precisamos, seguindo as regras do bom senso, tentar ampliar a democracia para o maior número possível de Estados organizados, mas não podemos pretender transformar num imperativo categórico aquilo que, no fundo, nunca deixou de ser "a pior forma de governo, salvo...".

Hélio Schwartsman é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

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