Pensata

Hélio Schwartsman

06/11/2003

Lugares em fogo

Diz o velho chavão que uma imagem vale por mil palavras. Não sei se concordo muito com o enunciado. Na verdade, não sei se ele faz muito sentido. Mas acho razoável afirmar que as pessoas de um modo geral mantêm uma relação forte com as imagens, principalmente se elas guardam algo de um suposto naturalismo fotográfico. Com efeito, uma foto de uma vítima de guerra com as entranhas expostas choca incomensuravelmente mais do que a descrição, talvez até mais vascularizada, deste mesmo evento.

E certamente foi para chocar que o controvertido historiador alemão Jörg Friedrich aproveitou o aniversário de 60 anos do bombardeio de Kassel, no qual teriam morrido numa única noite 10 mil pessoas, no último dia 22, para lançar seu "Brandstätten" ("Lugares em Fogo"), obra em que reúne cerca de 400 fotografias especialmente fortes de pessoas destroçadas por bombardeios na Segunda Guerra Mundial. As fotos, que são inéditas, foram coletadas em arquivos municipais de toda a Alemanha. A imensa maioria das vítimas são alemães que sucumbiram nos bombardeios lançados pelos aliados a partir de 1943. Segundo o próprio Friedrich, a campanha aérea na Alemanha deixou um saldo de 600 mil civis mortos, entre os quais 76 mil crianças. Os bombardeios sobre Hamburgo teriam custado 45 mil vidas. Friedrich até pode ter inflado um pouco os números, mas eles são extremamente elevados segundo todas as fontes. A "Encyclopaedia Britannica", que é insuspeita, fala em 40 mil mortos em Hamburgo. Para os bombardeios de Dresden, possivelmente os piores de todos, ela dá de 35 mil a 135 mil óbitos. Algumas das imagens (não as mais chocantes) de "Brandstätten" podem ser vistas no site da BBC. Um bom relato da história dessa obra pode ser lido no "The Guardian" 0,7792,1068437,00.html. Quem se interessa especialmente por esses assuntos e entende o alemão, pode consultar "Die Welt" 2003/10/16/183121.html.

Friedrich é o que se pode qualificar como um historiador revisionista. Em seu "Der Brand" ("O Fogo"), lançado no ano passado, ele criou polêmica ao chegar muito perto de acusar o líder britânico Winston Churchill de crimes de guerra. O livro foi um sucesso de vendas na Alemanha. Foram comercializados 185 mil exemplares, e o texto foi traduzido para seis línguas. Mas é importante frisar que Friedrich não é um daqueles revisionistas débeis mentais que procuram negar o Holocausto ou a responsabilidade da Alemanha na Segunda Guerra. Muito pelo contrário, ele escreve com todas as letras que foi Berlim que deu início à guerra aérea na Europa, ao lançar, a partir do outono de 1940, uma campanha maciça de bombardeios contra os britânicos, que custou a vida a 14 mil civis.

Antes de "Der Brand", o historiador ex-líder estudantil em 68 e ex-dirigente trotskista, hoje com 59 anos, publicou livros sobre o Holocausto e sobre os crimes de guerra da Wehrmacht, o exército alemão, na Frente Oriental. Seu passado esquerdista não bastou para poupá-lo de acusações, por parte da esquerda alemã, de simpatizar com o nazismo, principalmente por ter-se referido aos porões das casas que foram incendiados nos bombardeios aliados como "crematórios", o que evoca os fornos dos campos de concentração.

Tudo o que diz respeito ao nazismo é um tema sensível na Alemanha. Friedrich, apesar de suas vendas, não é bem-visto pela imprensa "mainstream". O jornal de centro "Die Welt" o ataca por profanar a dignidade dos mortos e por apresentar um texto pouco equilibrado, que dá a sensação de que os alemães foram apenas vítimas e não algozes na guerra. A TV pública ARD chama o livro de "provocação" e o critica por "comparar" os bombardeios ao Holocausto. O "Süddeutsche Zeitung", que, apesar de bávaro, é quase de centro-esquerda, foi um pouco mais longe e sugeriu a seus leitores consignar a obra de Friedrich à lata de lixo.

Até aqui, tentei fazer um relato tão neutro quanto possível do lançamento de "Brandstätten". Começo agora a inserir minhas opiniões. Acho que a imprensa alemã tem uma certa razão. É preciso muito cuidado diante de teses revisionistas. Não sou daqueles que consideram uma profanação comparar o Holocausto a qualquer coisa. Na verdade, até quando falamos que o nazismo é o "mal absoluto", nós já o estamos comparando (ainda que superlativamente) ao passado da humanidade. Nós podemos, sim, devemos até comparar o Holocausto a vários outros eventos para tentar estabelecer uma ordem e entender melhor a dimensão do crime cometido pelos nazistas. Isso não significa, como é óbvio, que só os nazistas tenham errado nem que, contra Hitler, todas as leis morais estivessem suspensas.

Na confortável condição de judeu que perdeu parentes para os campos de concentração nazistas, não tenho nenhuma dificuldade em afirmar que alguns dos bombardeios aliados poderiam, sim, ser qualificados como crimes de guerra. Não o foram porque os aliados triunfaram, e vencedores, por definição, não cometem crimes de guerra. Podemos sem dúvida admitir que fazia sentido bombardear o vale do Ruhr, o coração industrial da Alemanha. Também se pode dizer que Hamburgo era um alvo legítimo. Era lá que se construíam os temíveis submarinos alemães, que tantas perdas causaram aos aliados.

Já casos como o de Kassel e Dresden são muito mais difíceis de justificar. Essas cidades não tinham importância industrial ou militar. Na verdade, foram escolhidas como alvo justamente porque, sem valor tático ou estratégico, não eram nem ao menos defendidas por baterias antiaéreas. A racionália por trás dos ataques, que os britânicos nem procuravam esconder, era a de que, atingindo a população civil e minando sua capacidade de lutar, a guerra poderia ser abreviada. Fazer sentido, faz, mas me parece, ainda assim, uma lógica moralmente condenável, mesmo para os valores da época e no contexto da guerra. Vale lembrar que o presidente Franklin D. Roosevelt relutou antes de participar de algumas dessas ações, devido a objeções morais. Mas Roosevelt deixou-se convencer por Churchill.

Nós nos acostumamos a pensar a Segunda Guerra como uma luta do bem contra o mal, da liberdade contra a opressão. É claro que o nazismo é o que de mais perto existe do mal absoluto e que, se existe uma guerra justa, ela é a que foi travada pelos aliados. Mesmo diante desse quadro que dá margem a poucas dúvidas, devemos recusar as conceituações maniqueístas. Não é porque EUA, Reino Unido e Rússia estavam "certos" que não cometeram crimes de guerra. Eles os fizeram aos borbotões. Não há nenhuma justificativa militar, política ou mesmo científica para os EUA terem jogado, por exemplo, a segunda bomba atômica sobre os japoneses. A rigor, eles nem precisariam ter lançado a primeira, pois àquela altura o Japão já estava derrotado. Pode-se conceder aos americanos que Washington tenha querido reduzir as baixas que teria numa invasão terrestre ao arquipélago e, ao mesmo tempo, deixar claro para os soviéticos que já possuía a mais mortífera das armas. Para a bomba de Nagasaki, contudo, não há nenhuma racionália. Lançando o segundo artefato apenas três dias depois da primeira explosão, os EUA nem deram aos japoneses o tempo de perceber o que tinha acontecido.

Deixemos, porém, a guerra e o revisionismo de lado para nos centrar na questão das imagens. As fotos levantadas por Friedrich são, ao que tudo indica, autênticas. Poderia ele então, independentemente de considerações políticas e ideológicas, não publicá-las? Se o historiador e mesmo o jornalista estão comprometidos em tentar relatar os fatos tais como ocorreram e sem eufemismos, torna-se quase uma obrigação divulgar as imagens em questão, por mais chocantes que elas possam ser. Pode-se, na verdade deve-se, discutir a forma como essas fotos são editadas, mas não a oportunidade da fazê-lo. Como observou o próprio Friedrich, não sem uma ponta de provocação, Joseph Goebbels (ministro da Propaganda nazista) havia proibido a divulgação das imagens dos mortos nos bombardeios. "De algum modo, nós obedecemos à sua ordem até o dia de hoje", arrematou o polemista.

O que me parece surpreendente nesse caso todo é a diferença entre a palavra e a imagem. Até a rainha Elisabeth e o príncipe Charles já estiveram em cidades alemãs destruídas pelos britânicos e, em palavras, se solidarizaram com as vítimas. Agora porém que surgem imagens de crianças alemãs mortas a ilustrar os fatos, o que nem era tão polêmico ganha uma nova dimensão. É como se as fotos emprestassem materialidade e realidade ao que antes se apoiava apenas sobre a fluidez das palavras. Súbito, descobre-se que mesmo os aliados, os soldados do bem, foram capazes de produzir cenas tão chocantes como as dos campos de concentração nazistas. É claro que as fotos também escondem. A imagem da criança morta não nos diz nada, por exemplo, sobre as causas da guerra ou as circunstâncias políticas em que ela se produziu. Ainda assim, o choque, a crueza podem funcionar como ponto de partida para que se tente entender o porquê da dor. De algum modo, as imagens, ao igualar todos através da agonia, conspira contra a forma como nos acostumamos a pensar a Segunda Guerra. Nossos conceitos e crenças ficam abalados, o que é bom, porque nos faz pensar.

Hélio Schwartsman é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

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