Pensata

Hélio Schwartsman

20/11/2003

Crimes e castigos

Atendendo a provocações, volto a comentar o inominável assassinato do casal de namorados Liana Friedenbach e Felipe Caffé, desta vez sob o aspecto da lei. A tarefa que me cabe não é das mais agradáveis, pois ao sustentar que não se reduza a maioridade penal para 16 anos, como muitos agora exigem, estarei de algum modo defendendo o menor Xampinha, cujos atos estão além de qualquer defesa. O que de certa forma me tranquiliza é a convicção de que princípios existem para ser preservados contra exceções. E os crimes de Embu-Guaçu, como procurei mostrar em minha última coluna, foram justamente uma trágica exceção.

É claro que não sou um daqueles tarados que colocam a maioridade penal aos 18 anos como um fim em si mesmo. Não é desprovida de sentido a argumentação dos que defendem a redução afirmando que, nos dias de hoje, com a intensa circulação de informações, os jovens amadurecem mais cedo para algumas coisas. Se a lei já lhes faculta votar aos 16, por que não responder penalmente por seus atos?

Eu poderia, é certo, contra-argumentar. O jovem de 16 pode votar se quiser, enquanto o do de 18 ou mais está obrigado a fazê-lo. De todo modo, um garoto de 16 não pode dirigir veículos, abrir ou fechar negócios e nem candidatar-se à maioria dos cargos públicos eletivos. Aqui, numa interpretação rigorosa, a menoridade vai até os 35 anos, a idade a partir da qual alguém pode tornar-se presidente da República, vice ou senador da República, vivendo assim a plenitude de seus direitos civis.

O ponto que eu quero defender, contudo, não é este. Se, ignorando todas as nossas tradições jurídicas e culturais, fôssemos criar um sistema penal inteiramente novo, eu não veria grandes problemas em fixar a maioridade aos 16 ou mesmo permitir que o tribunal determinasse a capacidade jurídica de cada acusado, independentemente de sua idade cronológica. (Frise-se que não ver grandes problemas é diferente de ser simpático à proposta. Por mais que tente, não consigo deixar de considerar chocante a possibilidade de crianças de 10, 11 anos serem julgadas do mesmo modo que adultos, como ocorre nos EUA e no Reino Unido).

O fato, porém, é que não estamos criando um novo corpo jurídico "ex nihilo". Muito pelo contrário, estamos nos propondo a promover mudanças num que já existe. E a receita mais fácil para a frustração e o fracasso é legislar sob forte impacto emocional. É exatamente o que se fez na Lei dos Crimes Hediondos, a peça jurídica mais sem sentido e contraproducente da profícua sanha legiferante nacional. A sensação que se tem ao ler o artigo que define os delitos ditos hediondos é a de que ele não passa de um índice dos crimes que tiveram grande exposição na mídia ao longo dos últimos anos.

O resultado foi a quebra da "geometria" das penas. Ao agravar algumas e não outras, perde-se algo da noção de proporcionalidade. Ao endurecer demasiadamente o regime prisional dos condenados por certos crimes, contribuímos para criar a figura do "desesperado", o bandido que, por ter poucas esperanças de progressão no cumprimento da pena, se torna um indisciplinado contumaz. Quando ocorre de escapar do presídio, torna-se uma verdadeira besta-fera. O ser humano, mesmo os piores deles, precisam de esperança.

No mais, a título de provocação, pergunto: será que o tráfico de drogas, um delito no qual a suposta vítima está, tanto quanto o traficante, de acordo com a transação, é um crime assim tão terrível, que deva ser equiparado ao sequestro ou ao estupro seguidos de morte?

Voltando à questão dos jovens, é bom lembrar que a tradição do Direito brasileiro sempre foi a de considerá-los como seres em formação. Isso não significa, é claro, que crianças e adolescentes não devam ser punidos pelo que façam de errado. Muito pelo contrário, sanções bem aplicadas estão na base não só da educação como da vida em sociedade. A questão é que, tratando-se de jovens, precisamos agir com moderação e propósitos pedagógicos, na esperança, por vezes vã, de que eles se emendem. Se a almejada recuperação é relativamente rara, isso ocorre em grande medida porque a sociedade não se mostrou capaz de organizar Febens eficientes, que ofereçam uma chance real de ressocialização e não sejam verdadeiras escolas do crime.

De todo modo, é absolutamente falso afirmar que a legislação não pune menores. A maior pena a que eles podem ser condenados é de três anos. No caso de um jovem de 15 anos, esse período equivale a 20% de sua vida, o que não é pouco, principalmente quando se consideram as condições objetivas de uma unidade de infratores da Febem paulista, por exemplo. Elas nada ficam a dever a Carandirus, Depatris e outras cadeias de funesta memória. Muitos dos jovens internados cometeram delitos menores, contra o patrimônio e não contra a vida. Penas restritivas de direitos ou de prestação de serviços seriam uma sanção mais de acordo. E vale observar que, mesmo as mudanças propostas, como a de ampliar de três para dez a pena máxima destinada a menores, não dariam conta de um caso extremo como o de Xampinha. Será que dentre dez anos ele estará "melhor" do que dentro de três?

Também é preciso considerar que uma eventual redução da maioridade penal dificilmente levaria a uma diminuição do envolvimento de jovens em crimes. Parte da criminalidade juvenil se explica pelo fato de quadrilhas se utilizarem de menores (e sua suposta impunidade) para "puxar o gatilho" no lugar de adultos. O resultado previsível de uma mudança na lei seria o recrutamento de um contingente de "soldados" ainda mais jovem do que o atual. O que fazer então? Reduzir ainda mais a maioridade penal? Para 11, 9, 7 anos de idade? Seguir o exemplo de alguns Estados norte-americanos e aplicar a pena de morte a crianças?

E nunca é demais lembrar que, informalmente, já nos utilizamos da sentença capital. A expectativa de vida de um jovem envolvido com o crime é significativamente inferior à de um que frequente a escola e não se relacione com bandidos. Gangues rivais, esquadrões de extermínio e uma polícia violenta se encarregam de abreviar a vida desses garotos. Um jovem como Xampinha dificilmente chegará aos 20, 25 anos. É como se ele tivesse um câncer cujas chances de sobrevida superior a cinco anos são reduzidas.

É compreensível que familiares de pessoas mortas por menores e todos os que ficaram chocados com a barbaridade de crimes como o de Embu-Guaçu nutramos um justo desejo de vingança. Como pessoas físicas, temos o direito de desejar que Xampinhas, Batorés e assemelhados morram ou pelo menos apodreçam na cadeia. A questão é que o Estado não pode ceder a essa lógica pré-kantiana, pré-jurídica, pré-civilizatória. Não pode, tampouco, imaginar que todo menor que se envolva em ilícitos seja um sociopata além da recuperação e quiçá da própria humanidade. Sempre existirão exceções, mas a lei precisa ser concebida para a regra. O poder público precisa se ater à idéia de punir o indivíduo e sempre na justa medida, sem paixão para universalizar o Direito. (Exceções muito excepcionais, nas quais talvez Xampinha se enquadre, podem sempre ser tratadas como desvios psiquiátricos, para os quais a "pena", na prática, pode ser a prisão perpétua, a depender de constante avaliação médica. Aqui, não é necessária nenhuma mudança na legislação).

Embora o impulso de muitos diante de casos como o de Liana e Felipe possa ser o exterminar os autores do crime, como cidadãos precisamos defender soluções socialmente mais funcionais. Pelo menos desde o século 18, desde Cesare Beccaria (1738-1794) e Jeremy Bentham (1748-1832), deveríamos ter aceitado a noção de que a pena não tem como objetivo primordial "fazer justiça", mas principalmente preservar a ordem pública. O criminoso é encarcerado por um duplo propósito: entre grades ele deixa de representar uma ameaça para a sociedade e, ao ser preso, serve de exemplo para que outros não repitam seu delito. A pena já não precisa ser cruel. Basta que ela seja universal, isto é, que a grande maioria dos delitos cometidos resulte na punição de seus autores. Aqui, o Estado pode ser magnânimo e oferecer a crianças e adolescentes uma segunda chance. O que detém o crime não são exatamente as penas, mas um sistema que funcione. É esse o objetivo que precisamos perseguir.

Hélio Schwartsman é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

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