Pensata

Hélio Schwartsman

22/01/2004

São Paulo, o rio e Heráclito

No próximo domingo, a cidade de São Paulo celebra 450 anos. Em termos rigorosos, aniversários em geral e datas "redondas" em particular são uma tremenda de uma bobagem. Uma pessoa de 99 anos, 11 meses e 29 dias não é essencialmente diferente dela mesma no dia seguinte, quando completa cem anos. A passagem do tempo se dá num fluxo contínuo, indiferente à forma como marcamos o seu transcurso.

O primeiro a elaborar um pouco melhor a idéia de fluxo na filosofia foi Heráclito de Éfeso, um dos chamados pré-socráticos que teria vivido no final do 6º século a.C. Aprendi bem a lição ensinada pelo inesquecível mestre Gérard Lebrun e desconfio da própria possibilidade de fazer história das idéias dos pré-socráticos. Será que podemos mesmo nos fiar nos "fragmentos", as poucas linhas de textos remanescentes normalmente obtidas a partir de relatos de fontes de segunda, terceira ou quarta mão que, não raro, enunciavam o argumento do filósofo apenas para rejeitá-lo a seguir? Apesar dessa séria limitação, acho que vale a pena examinarmos mais detidamente a célebre alegoria do rio de Heráclito. Na pior das hipóteses, gastaremos alguns neurônios pensando, o que pelo menos não faz mal à saúde.

É necessário, antes de mais nada, defender o bom Heráclito das falsas interpretações que lhe impingiram Platão e, posteriormente, Aristóteles, no que diz respeito ao fluxo universal. Está no "Crátilo" (402a) de Platão a passagem que se tornou, equivocadamente, sinônimo do pensamento do filósofo efésio: "Heráclito, creio, diz que todas as coisas passam e nada permanece e, comparando os entes (tà ónta) ao fluxo de um rio, diz que você não pode entrar duas vezes no mesmo rio".

Na verdade, isso é apenas o que Platão diz que Heráclito diz. O que temos de mais fidedigno de Heráclito a respeito do rio é o fragmento B12 (onde a letra "b", no sistema de classificação Diels-Krantz, indica "ipsissima verba", isto é, que se trata de palavras do próprio filósofo), o qual reza: "Para os que entram nos mesmos rios, outras e outras são as águas que correm por eles". Parece-me mais razoável depreender da enigmática frase --já na Antigüidade Heráclito era conhecido como "o Obscuro"-- que o rio permanece o mesmo, apesar de suas águas fluírem. Podemos ir mais longe e postular que o rio só é rio porque suas águas fluem e jamais são as mesmas. Se assim não fosse, o rio se aparentaria mais a um lago.

É possível que já Platão tivesse experimentado dificuldades para ter acesso às exatas palavras de Heráclito. De todo modo, se formos dar crédito ao fragmento B12, o resumo platônico fica comprometido. O filósofo efésio não é tão radical, e a própria mudança --o "tudo passa e nada permanece o mesmo"-- não se lança sobre nós num fluxo contínuo, mas segundo leis que, no fundo, permitem que as coisas sejam o que são: a condição do rio está na mudança contínua de suas águas.

Essa mudança mais maleável como parte da própria noção de identidade é um princípio defensável até hoje. Corro o risco de cometer anacronismos, mas diria que o raciocínio de Heráclito vale até para nós mesmos. Não somos rio, mas somos continuamente diferentes. O bebê difere do homem adulto que difere do velho, mas eles são a mesma pessoa. A rigor, mesmo a matéria que nos constitui passa. Num intervalo de alguns anos, todos os átomos que compõem um indivíduo são substituídos. Ainda assim, permanece a identidade: eu não deixo de ser eu porque meus átomos são outros. Essa idéia nos confere uma imaterialidade um pouco incômoda. Se aquilo que nos constitui não depende tanto de um suporte material permanente, fica aberta a possibilidade de mantermos a identidade para além do corpo. Cenários de ficção científica no qual "pessoas" são transferidas para máquinas ou para outros corpos parecem menos impossíveis. Ficariam reduzidos a uma simples questão tecnológica.

Voltando ao fluxo do tempo, ele parece um pouco menos difícil de apreender. No mundo não-quântico e não relativístico que temos à nossa volta, todas as experiências apontam para um tempo uniforme e e unidirecional. As únicas "violações" a essa regra ocorrem quando atravessamos para o oeste uma linha de fuso ou quando saímos do horário de verão. Com isso, pelo menos no plano intelectual, nos conformamos a aceitar a passagem do tempo. Emocionalmente, não é tão simples assim admitir que o tempo flui. Daí o sucesso de cirurgias plásticas e do botox. Num nível mais profundo, há correntes psicanalíticas que colocam a origem de todas as neuroses do homem no fato de ele ser o único animal que sabe de antemão que vai morrer.

O tempo no universo clássico parece de fato ser uniforme e unidirecional. Pode ser objetivamente mensurado nas batidas de um relógio ou no decaimento de um núcleo atômico radiativo. Só que esse tempo, cuja passagem é implacável, assume um caráter tão tirânico para a existência humana que frequentemente criamos nosso próprio tempo emocional, no qual podemos viver mais confortavelmente. Se nos fixássemos na idéia de que cada segundo que passa é um segundo que nos aproximamos de nossa morte, viver seria um fardo ainda maior do que normalmente é. Assim, num nível não-racional, suspendemos o fluxo contínuo do tempo. Não nos pensamos a cada instante como mais velhos do que éramos um segundo atrás. A imagem que temos de nós mesmos pode passar anos sem ser "atualizada". A menos que tenham ocorrido experiências especialmente fortes, uma pessoa com 37 anos não deve se achar muito diferente de si mesma com 35 ou com 34 anos. A autopercepção pode ser um relógio que anda muito lentamente.

É nesse contexto de um tempo psicológico que a idéia de aniversário e de celebrar datas redondas ganha alguma relevância. São ocasiões que se nos apresentam para atualizarmos ainda que parcialmente nossos relógios internos. Em termos objetivos, a passagem dos 49 para os 50 anos não é diferente da, digamos, dos 28 anos e três meses para a dos 28 anos, três meses e um dia, mas, psicologicamente, a diferença pode ser enorme. Apesar de o tempo correr indiferente a nossas necessidades e desejos, estes são tão fortes que bastam para nos fazer construir nosso próprio tempo psicológico, no qual irrelevâncias objetivas como períodos de 365 dias e seus múltiplos podem ganhar a importância que lhes dermos.

Os 450 anos de São Paulo ficam como um convite para o munícipe --ou não-- atualizar seus sentimentos sobre a cidade, que, heraclitianamente, a cada instante, torna-se outra sem com isso deixar de ser ela mesma.

Hélio Schwartsman é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

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