Pensata

Hélio Schwartsman

29/01/2004

Depois do véu, a barba

Ainda não tive ocasião de comentar a decisão do presidente da França, Jacques Chirac, de propor a chamada Lei da Laicidade, a peça legislativa concebida para banir da escola pública francesa os véus utilizados pelas garotas muçulmanas. Apesar de eu ser um entusiasta da separação entre Estado e igreja, oponho-me a essa medida, que, acredito, extrapola os limites mínimos que devem ser reservados para as liberdades individuais. Mas vamos por partes.

Estou de acordo com as autoridades francesas em relação a vários pontos. Antes de mais nada, parece-me indiscutível que a escola pública deve ser laica e republicana. Isso deveria valer tanto para a França como para o Brasil. É inadmissível, por exemplo, que existam símbolos religiosos como crucifixos nas salas de aula. Também acho razoável sustentar que professores, enquanto representantes do Estado, devem evitar utilizar ornamentos religiosos ou mesmo políticos no espaço escolar. Mas será que essa mesma temperança deve ser imposta aos alunos? Acredito que não, a menos que queiramos transformar as escolas num exército, onde todos andam uniformizados e expressões da individualidade costumam ser severamente reprimidas. Enquanto o professor e o soldado (pelo menos na França) optam por seguir essas carreiras, o aluno não tem escolha, sendo obrigado por lei a freqüentar os bancos escolares. Parece-me que seria violento e antipedagógico impor-lhe também limites fortes à expressão da individualidade justamente naquela fase da vida (penso aqui no ensino médio) em que a auto-afirmação costuma ser buscada mais ativamente.

Eu também concordo com as autoridades no que diz respeito ao objetivo de integrar todos os franceses, muçulmanos e não muçulmanos, em um ambiente laico e republicano. O melhor remédio contra extremismos está na educação para a tolerância. Se o jovem aprender a respeitar diferenças étnicas e religiosas e ver a exuberância de tipos e credos não como uma ameaça, mas como um índice da riqueza cultural do homem, ele dificilmente se deixará seduzir por discursos inflamados de pregação do ódio. Se a escola pública francesa se saísse melhor nesse quesito, haveria menos sinagogas depredadas por jovens muçulmanos e menos "franceses" votando em Jean-Marie Le Pen.

Desconfio, porém, de que a Lei da Laicidade como está sendo proposta fracassa em tratar de modo igualitário todas as religiões. Se quisermos, ela falha em aplicar o republicanismo francês --o "liberté, égalité et fraternité"-- aos deuses, o que é grave.

É claro que nem a França poderia baixar uma norma proibindo apenas o véu islâmico ("hijab"), mesmo que em suas formas mais ostensivas como o "khimar" e o "niqab" árabes, o "chador" iraniano ou a "burqa" afegã. Podemos censurar aos gauleses seu chauvinismo em geral e anti-semitismo em particular, mas é forçoso reconhecer que eles pelo menos tentam ser bons republicanos. Assim, a Lei da Laicidade, cujo projeto ainda está em fase de redação, deverá assumir um tom mais universalista: serão proscritos todos os "símbolos religiosos ostensivos". Pelo que já declararam várias autoridades, a idéia é vetar, além de véus, o quipá (solidéu judaico) e crucifixos muito grandes. Pequenas cruzes, bem como estrelas de David de tamanho razoável serão toleradas.

É claro que não é tão simples julgar o que é ostensivo e o que não o é. Uma solução prática para essa dificuldade seria que a lei trouxesse a lista dos itens definitivamente proibidos e as dimensões com as quais cruzes e estrelas se tornam aceitáveis. Só que a França não parece inclinada a seguir esse caminho. Como bem observou o ministro da Educação Nacional, Luc Ferry, diante da comissão que prepara a Lei da Laicidade, se muçulmanos transformarem a barba, por exemplo, num símbolo religioso, ela também precisará ser banida dos estabelecimentos oficiais de ensino. Para o ministro, o "arbitrário dos signos, (...) que permite inventar signos a partir de uma simples pilosidade", exige que a lei seja vaga para poder enquadrar casos imprevistos.

Não é preciso ser um Lineu para perceber que esse sistema de classificação encerra problemas. Eles, aliás, já começaram a aparecer. Ninguém duvida de que um turbante colocado sobre a cabeça de um indivíduo seja um sinal relativamente ostensivo. Só que o legislador francês precisará inventar alguma mágica para elaborar uma norma que, a um só tempo, permita turbantes, proíba véus e pareça seguir os ditames da racionalidade cartesiana, que sempre convém observar em terras gálicas. É que, com essa novela das proibições, a França descobriu que possui uma comunidade sikh de cerca de 3.000 membros. Eles estão bem integrados à sociedade francesa e não costumam causar problemas de nenhuma espécie. O governo francês já deixou claro que não deseja constrangê-los e andou falando em permitir "turbantes discretos", o que quer que isso signifique.

A gentileza para com os sikhs não é sem sentido do ponto de vista da tolerância religiosa. É que os homens sikhs não podem deixar de usar turbante por razões teológicas. O "kesh", um dos cinco deveres sagrados do sikhismo, impõe aos fiéis do sexo masculino que jamais cortem seus cabelos. O turbante com o qual os sikhs disciplinam suas "pilosidades" adquire, assim, dimensões de saúde pública.

Ora, para ser verdadeiramente republicanos, os franceses teriam igualmente de abrir uma exceção para véus discretos, pois é também por razões religiosas que muçulmanas os utilizam. O Corão, no versículo 31 da sura XXIV, comanda: "Diz às crentes que baixem os olhos e observem a continência, que não mostrem os seus ornamentos (além dos que normalmente aparecem); que cubram o peito com seus véus e não mostram os seus atrativos, a não ser aos seus esposos, seus pais, seus sogros, seus filhos, seus enteados, seus irmãos, seus sobrinhos, às mulheres suas servas, ou aos escravos ou servos varões sem desejos carnais, ou às crianças que não ligam à nudez das mulheres; que não agitem os seus pés enquanto andam, para que não chamem à atenção sobre seus ornamentos ocultos". Mais, há um "hadith" (registro das palavras e atos do profeta, cuja coleção consiste no segundo documento mais importante do islamismo, logo depois do Corão) que determina que as mulheres se cubram até os punhos e até os tornozelos.

É claro que tudo é, sempre, uma questão de interpretação. Do "hijab" à "burqa" há uma enorme distância e muitos metros de tecido. Parece, contudo, razoável afirmar que o livro sagrado e as tradições do islã determinam que as mulheres usem algum tipo de véu. Numa interpretação mais liberal, a mulher deve ser apenas pudica. No hiper-realismo fundamentalista de algumas correntes, elas não podem nem sair às ruas para não "mostrar seus atrativos". O quanto da opressão às mulheres islâmicas está na religião e o quanto está nos usos e costumes das sociedades é uma questão em aberto que provavelmente jamais será resolvida.

O fato é que os franceses mal conseguem disfarçar que a Lei da Laicidade é destinada exclusivamente a retirar o véu das garotas muçulmanas. Nesse "exclusivamente" esconde-se a negação do princípio republicano de igualdade diante da lei.

Esconde-se também, acho, uma violência excessiva. Embora seja crível que muitas garotas muçulmanas só usem o véu por imposição paterna, parece também razoável acreditar que várias o vistam de livre e espontânea vontade, por orgulhar-se de suas origens e tradições, do mesmo modo que moças ocidentais colocam saias, por exemplo.

A escola pública deve, sem dúvida, ser laica, e a integração secular é um valor a perseguir. Só que essas metas não podem ser buscadas autoritariamente e pelo sacrifício da mais elementar das liberdades individuais, que é a de possuir uma individualidade e exprimi-la pacificamente.

Termino com uma inconfidência. Partilho com muitos franceses da inclinação natural por um anticlericalismo militante. Nada contra sacerdotes e ministros religiosos pessoalmente, mas tudo contra os crimes que as instituições que representam já cometeram. Aprendi, porém, a controlar meus impulsos anticlericais. Se não o fizesse estaria incorrendo na mesma intolerância que critico, mas com o sinal trocado. Para o laicismo ser consistente, ele precisa diferenciar-se das igrejas. Precisa, assim, aceitá-las todas como uma escolha legítima de pessoas que queiram buscar um deus, atenda ele por Jeová, Cristo, Alá, Olorun, Júpiter, Zeus, Universo ou simplesmente não atenda, como me parece mais provável.

Hélio Schwartsman é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

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