Pensata

Hélio Schwartsman

17/05/2001

O apagar de uma era ou o Iluminismo de FHC

Resisti bravamente em falar mal do governo por conta da CPI da corrupção. Acreditava que teria muito pouco a acrescentar aos comentários mais furibundos que li na imprensa em geral. Assim, havia decidido deixar o assunto de lado.

Bem, agora, ao ocaso da CPI da corrupção, soma-se a eletrizante crise do apagão. No meu modesto entendimento, o presidente Fernando Henrique Cardoso, se tivesse um pingo de decência, apresentaria seu pedido de renúncia.

Não digo isso porque antipatize com FHC. Ao contrário, considero-o um homem correto e digno. Cheguei a ter esperanças com seu primeiro governo. Não creio que esteja pessoalmente envolvido com corrupção, mas a tolera. E a tolera acreditando que é o melhor para o país, que vale mais a pena ir negociando e compondo, mesmo com ACMs, Arrudas, Jáderes e empresários dispostos a privatizar o Estado, do que criar uma situação de ruptura, social, com Washington etc., que ninguém sabe como termina.

Entendo que se aceite um mal esperando evitar um mal ainda pior. Isso é clássico. Já está em Platão. O que não compreendo é como FHC pode imaginar que o necessário conflitozinho entre a população e as elites possa ser pior do que o a situação atual, do que Sudams, Sudenes, privatizações canibalescas e, principalmente, uma aliança de governo que é estruturalmente incapaz de promover o salto de desenvolvimento de que o país necessita.

Preferir a certeza do "statu quo" injusto à perspectiva de justiça social, mesmo que à custa de um impassezinho na sociedade, é um paradoxo que está além de minha dialética. É uma contradição para a qual não vislumbro nenhuma "Aufhebung" (superação).

Mas chega. Não pretendia fazer aqui sociologia de botequim. Meu plano é bem mais simples, é mostrar que, com o apagão, FHC falhou miseravelmente mesmo em sua projeto liberal-reformista de plantar o germe da "modernidade" no país.

O que vejo no apagão, ao contrário, é a volta ao Neolítico, à Idade da Pedra, para falar português claro. Pensando bem, talvez seja ainda pior, pois no Neolítico as pessoas não eram eletrodependentes nem viviam em aglomerações de vários milhões de indivíduos.

Embora ainda não conheçamos os detalhes do racionamento/tarifaço/apagão, não é preciso PhD em engenharia ou economia para concluir que será o caos. A FGV calcula o prejuízo, por cima, em 2 pontos percentuais do crescimento do PIB previsto para 2001 e 800 mil empregos.

Os problemas práticos que os cortes vão causar também podem ser facilmente calculados. Se somos 170 milhões de brasileiros, haverá 160,8 milhões de pessoas xingando diariamente e com razão o governo. Apenas quem já vive sem energia elétrica 9,2 milhões, segundo o IBGE em algum rincão do país passará quase incólume pelos apagões.

O leitor pode até suspeitar de um tom irônico nestas linhas, mas o problema pode adquirir dimensões trágicas. Uma UTI sem eletricidade torna-se um necrotério. Uma cidade como São Paulo ou Rio de Janeiro sem semáforos é um excelente campo de provas para a física quântica, mas é altamente improvável que um corpo qualquer consiga cumprir uma dada trajetória no intervalo de tempo esperado.

Se eu fosse otimista, sugeriria que subir escada a pé é bom para a saúde e que ficar sem TV à noite tende a promover o amor. Como não sou, lembro que tudo o que você tem na geladeira pode se estragar se a luz demorar a voltar e que ler no escuro faz mal à vista.

O pior de tudo é que a crise energética é, por definição, a mais evitável de todas as crises. O governo, quando tenta responsabilizar são Pedro, mente despudoradamente, assim como vinha mentindo para minimizar o tamanho da crise.

Ainda que as chuvas estejam caindo em volume inferior à média dos últimos anos, o Brasil está muito longe de experimentar os índices pluviométricos do deserto de Lut ou de Atacama.

Qualquer sistema de geração de energia deveria operar com a possibilidade de redução da oferta de água, de petróleo ou de qualquer outra matriz por longos períodos. Vai faltar luz não porque tenha chovido pouco, mas por incompetência. Incompetência para prever, para investir, para administrar.

Aliás, não foi só FHC que não renunciou. Até o momento em que escrevo estas linhas, não foi demitido nenhum ministro, diretor, secretário de agência, nada. Se aplicarmos um raciocínio à la Arruda, concluiremos que a culpa dos apagões é do ajudante do eletricista do palácio do Alvorada.

Um governista cínico poderá, a exemplo do que disse Paulo Maluf a respeito do trânsito, afirmar que apagão é sinônimo de crescimento, de desenvolvimento. Como não sou governista e respeito o verdadeiro cinismo, de Antístenes e Diógenes, prefiro ver, no apagão, a falência, sob FHC, da idéia mais básica de administração e, por conseguinte, de Estado, que a de gerenciar recursos com um mínimo de sabedoria. Desde o relato bíblico de José sabemos que devemos, na abundância, gerar reservas para os tempos de penúria.

Obviamente, não espero que FHC renuncie. Se estivéssemos num parlamentarismo europeu ele acabaria caindo por força dos apagões. No Brasil presidencialista, isso não deve acontecer. Seu governo agora entra num fim melancólico, o que lamento. O homem que pretendia trazer a verdadeira modernidade para o país acabou por lançá-lo numa nova Idade das Trevas. Se existem deuses, eles têm um senso de humor acerbo.

Hélio Schwartsman é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

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