Pensata

Hélio Schwartsman

23/12/2004

Espírito de Natal

Imbuído do mais autêntico espírito natalino, arrisco hoje uma coluna sobre a mais popular festa da cristandade. (Antes, havia cogitado de dar prosseguimento a meu texto da semana passada e desenvolver um pouco mais alguns argumentos em defesa da legalização do aborto, mas achei que seria de mau gosto fazê-lo quando se celebra o nascimento de Cristo).

A primeira pergunta a responder é que diabos eu, um ateu de ascendência judaica, tem a ver com o Natal. Gostaria que a resposta fosse um "nada". A verdade, porém, é que é praticamente impossível passar ao largo dessa data. Mesmo os mais aguerridos militantes antinatalistas sentem as repercussões das festividades, que afetam os mais variados aspectos da vida, indo dos megacongestionamentos de carros nas grandes cidades até os indefectíveis pedidos de caixinhas de fim de ano.

Relendo as frases acima, percebo que corro o risco de ser mal interpretado. Embora eu não ligue muito para o natalício Daquele-bom-rapaz-judeu, não chego a amotinar-me contra as celebrações. Gosto das comidas da festa e aprecio presentear especialmente as crianças.

(Aproveito a deixa para fazer um parêntese provocativo. Contrariando as recomendações de toda a pedagogia moderna, meus filhos gêmeos Ian e David, agora com quase três anos, vivem ganhando espadas, revólveres, metralhadoras e outros brinquedos hoje tidos como politicamente incorretos. Espanta-me a idéia de que alguém possa acreditar que são esses objetos que tornam as crianças violentas e não que elas não o sejam "ab ovo".

Qualquer um que já tenha parado alguns minutos para olhar garotos brincando percebe que a violência é "built-in", um dado da natureza humana. Se eu não lhes desse "armas", eles as improvisariam. No jogos dos meninos, até um inocente cavalinho de pau se torna um "mortífero" cajado lançador de raios.

Há quem afirme que crianças só não se matam umas às outras porque os pais impedem seu acesso a objetos realmente perigosos, como facas afiadas e armas de verdade. Quanto mais os observo --brincando e também brigando-- mais me convenço da natureza ambivalente do homem, que é capaz tanto dos mais mesquinhos gestos de egoísmo e violência como de grandes atos de generosidade e amor. Exceto em casos patológicos, não são os brinquedos que damos às crianças que definem a personalidade e o grau de agressividade do adulto).

Esperando não perder-me mais em desvios, passo ao propósito dessa coluna, que é aventar algumas hipóteses sobre a extrema popularidade do Natal, mesmo entre não-religiosos.

Se há uma característica que aprecio no cristianismo é a sua visão para o marketing. Convenhamos que é preciso ser muito bom para converter o que era uma leve dissidência de uma religião complicada e impopular como o judaísmo numa das fés mais seguidas e difundidas do mundo. E a construção da liturgia do Natal ilustra de modo exemplar essa vocação mercadológica do cristianismo.

Quem deu início ao processo de popularização do cristianismo no século 1º foi um judeu: Paulo de Tarso. Diferentemente de Tiago, Pedro e dos seguidores de Cristo, Paulo, que era um judeu da diáspora, falante do grego e pregava para não-judeus, o que se revelou fundamental para dar as feições ao cristianismo paulino que foi o que triunfou historicamente.

O judaísmo é uma religião muito difícil de vender. Assim, para tornar o judaísmo cristão mais palatável para os gentios, Paulo procedeu a uma série de modificações no que diz respeito a pontos como a circuncisão, as proibições alimentares e até a sua intolerância para com outros credos. Foi assim que o hoje santo proclamou que a antiga aliança (a lei mosaica) havia sido substituída pela nova, cujas exigências, por ele mesmo estabelecidas, não eram tão draconianas.

Em seus primórdios, o cristianismo soube valer-se de elementos sincréticos que o ajudaram a difundir-se, embora pareça um exagero afirmar que toda e cada uma das amalgamações procedidas entre padrões cristãos e de outros credos tenha sido metodicamente premeditada.

A data do nascimento de Cristo, por exemplo, foi definida como 25 de dezembro por cronógrafos do século 3º. A explicação é bem divertida. Como todos sabem, a criação se deu no equinócio de primavera, à época reconhecido como ocorrendo dia 25 de março. Ora, se Deus criou o mundo num 25 de março, nada mais natural do que imaginar que também tenha sido nessa data que Ele concebeu seu Filho Unigênito.

Assim, Cristo nasce nove meses depois, num 25 de dezembro. Quem prefere interpretações mais simples pode julgar que escolheram o 25 de dezembro para celebrar o Natal porque nessa data ocorria uma outra festa muito popular à época, o nascimento de Mitra, o deus luminoso da mitologia védico-pérsica, especialmente apreciado pelos legionários romanos. Também no dia 25 de dezembro, várias outras tradições, como a romana, a germânica e a céltica, exaltavam o solstício de inverno. Se as pessoas pudessem reconhecer elementos familiares no cristianismo, seria muito mais fácil fazê-las abraçar a nova fé.

As coincidências entre símbolos do Natal e de outras crenças não se limitam à data escolhida para representar o nascimento de Cristo. O hábito de trocar presentes, por exemplo, é uma herança das Saturnais romanas, festival que ia de 17 a 23 de dezembro no qual se pagava tributo a Saturno (Deus do tempo) promovendo, entre outras coisas, orgias.

A árvore e a decoração de Natal são ainda mais "universais". Já antigos egípcios e hebreus usavam árvores e guirlandas para simbolizar a vida eterna. O culto a vegetais frondosos também era freqüente em praticamente todas as tradições pagãs européias, em especial a germânica e a céltica. Pelo menos no caso dos escandinavos sabe-se que o hábito de decorar as casas no solstício de inverno foi mantido mesmo depois da conversão ao cristianismo.

Modernamente, as árvores de Natal ganharam o mundo através dos alemães. Já no século 18, luteranos costumavam armá-las. A moda chegou à Inglaterra no século 19 com o enlace entre a rainha vitória e seu príncipe consorte alemão Albert. Daí a árvore conquistou os EUA e o mundo.

Como bom incréu que sou, não acredito em deuses sejam eles demiúrgicos, todo-poderosos ou venham na forma de panteão. Ainda assim, acho importante traçar uma distinção entre os sistemas monoteísta e politeísta. Um dos segredos da impopularidade dos judeus em tempos antigos era o fato de não aceitarem as "verdades" religiosas de outros povos. Enquanto gregos, persas e romanos podiam confraternizar-se encontrando características comuns entre seus deuses e até as reelaborando juntos --as semelhanças entre Zeus, Mitra e Júpiter não são obra do acaso nem apenas da origem comum indo-européia--, o Deus ciumento dos hebreus exigia exclusividade. Ele deveria ser o único e não poderia haver nenhum outro.

O cristianismo, como integrante da tradição monoteísta, também possui um Deus único. Mas, em elementos não centrais para a teologia e para a doutrina, os cristãos souberam negociar com outros povos. É claro que o cristianismo não pode admitir o culto a Mitra, mas por que não ficar com a data de 25 de dezembro para celebrar o nascimento de Cristo? o Vaticano não pode autorizar preces para Tutatis ou Odin, mas por que não incorporar uma arvorezinha e uma guirlanda nas festas? Esse espírito de negociação e a vocação para o marketing ajudaram a tornar o Natal a mais popular das festas religiosas, mesmo entre não-religiosos.

Paradoxalmente, ele é tão popular que os mais religiosos costumam criticá-lo por seu extraordinário sucesso que lhe dá um caráter inevitavelmente profano. Daí as intermináveis queixas contra a mercantilização do Natal etc. etc. Ora, pelo menos para nós, ateus, a religião não é muito mais do que uma busca por almas, na qual os pais fundadores do cristianismo se mostraram enormemente competentes.

PS - Desejo a todos boas festas e aviso que na semana que vem não poderei escrever. Retomo a coluna na epifania, isto é, no dia 6 de janeiro, quando os cristãos ortodoxos celebram seu Natal.

Hélio Schwartsman é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

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