Pensata

Hélio Schwartsman

28/04/2005

O papa Ratzinger

Assentada a poeira da eleição de Bento 16 para a cátedra de Pedro, acho que já posso comentá-la. Pessoalmente eu gostei bastante da escolha do cardeal Joseph Ratzinger. Duvido, porém, que ele --ou qualquer outro religioso-- aprovaria minhas razões.

Ratzinger, que vem sendo chamado de coisas como Rottweiler de Deus e Adolf 1º, é um intelectual brilhante, um pensador fino, cujas posições podem ser classificadas sem medo de erro como arquiconservadoras. Para mim, que atribuo valor à Igreja Católica apenas pelo que ela já foi capaz de produzir nos planos intelectual e artístico, a indicação é muito bem-vinda. Se existe a remota chance de eu algum dia assistir a uma missa, é ela ser rezada em latim. Bento 16 é tão próximo aos setores reacionários da igreja que não me parece impossível que ele reverta pontos do Concílio Vaticano 2º como a utilização das línguas nacionais. É claro que estou falando da perspectiva de um judeu ateu que professa o relativismo religioso e o materialismo --justamente o que o papa Ratzinger se propõe a combater.

Quanto às centenas de milhares de fiéis com idéias de esquerda que ficaram decepcionados com a escolha, eles têm a minha simpatia, mas receio que o papa esteja certo (sei que essa observação é uma tautologia para os católicos). A igreja é como um clube. Hoje, ninguém mais é compelido a pertencer a seus quadros. Mas quem quiser fazê-lo deve acatar as normas internas. E a Igreja Católica Apostólica Romana não é nem nunca foi uma democracia. Ela é melhor descrita como uma monarquia absolutista não-dinástica. O papa é provavelmente o soberano que mais poderes reúne no planeta, pois não tem suas ações limitadas por nenhum tipo de Parlamento, nem "pro forma".

Também é verdade que esses maus fiéis, os tais de "caóticos" aos quais dom Eusébio cardeal Scheidt se referiu, também são livres para declarar-se católicos mesmo que não cumpram com as exigências do Vaticano. E não creio que Bento 16 chegará ao extremo de excomungar todos os que descurem da rígida moral sexual preconizada pela Santa Sé. De resto, a grande vantagem do catolicismo sobre outras religiões é que todos os pecados são em princípio perdoáveis. Nenhuma perversão humana está além do arrependimento sincero e algumas rezas.

Outra possibilidade à disposição dos descontentes é fundar a Igreja Católica Democrática, que poderia até estabelecer eleições diretas para papa. No Brasil, a nova instituição teria também a vantagem de gozar de imunidade tributária.

Preocupam-me, admito, as posições da igreja em relação à saúde pública. Considero um crime sanitário a condenação ao uso de camisinhas no contexto da pandemia de Aids e outras doenças sexualmente transmissíveis. De modo análogo, julgo contraproducente o veto ao aborto, que, pelo menos aqui no Brasil, segue sendo realizado clandestinamente à razão de centenas de milhares por ano apesar do que digam o Código Penal e o papa. Essa, contudo, é uma interpretação laica. De resto, ninguém, exceto em momentos de delírio, esperava razoavelmente que os príncipes da igreja elegeriam um sumo pontífice a favor da camisinha, do aborto, do homossexualismo e de tudo aquilo que o Vaticano vem condenando há séculos ainda que com variada veemência.

Como já disse, minha perspectiva é a de um incréu pouco preocupado com o "market share" da Igreja Católica. Quando me perguntam, porém, se considero a escolha do novo papa boa para o futuro do Vaticano, especialmente no que diz respeito ao número de adeptos, a resposta é negativa. Aliás, não sou eu quem diz, mas o próprio Ratzinger na homilia da missa "pro eligendo papa", na véspera do conclave. Ali o ainda cardeal foi enfático na condenação ao relativismo e ao materialismo individualista. Afirmou com veemência preferir igrejas vazias, mas com bons católicos, a templos repletos de fiéis relapsos. Não sou evidentemente eu quem vai corrigir o papa. Se ele, que é a parte mais interessada, considera o "trade-off" vantajoso, não cabe a mim preocupar-me com a freqüência às missas.

O curioso nessa declaração do ainda cardeal, como bem observou meu amigo Vinicius Mota em sua pensata do último domingo, é que ela significa quase uma admissão de derrota, à medida em que parece renunciar à idéia de universalidade do catolicismo. Deixo a sociologia das religiões para o Vinicius e me centro no aspecto etimológico da palavra "católico". Identificamos aqui duas raízes gregas "katá", preposição que pode significar "para", e "hólos", que significa "todo", "inteiro". "Katholikós" designa, portanto, algo como "para todos", e é ordinariamente traduzido como "universal". Para uma igreja que carrega sua pretensão de universalidade até no título, conformar-se com uma redução na proporção de fiéis não é exatamente cômodo. É claro que os católicos não falarão em derrota, preferindo eufemismos como voltar-se para dentro, recuo estratégico, pausa para reflexão, autenticação etc.

É fato, porém, que estamos observado à continuada decadência da influência da igreja romana desde a Reforma protestante no século 16. Digamos que a concorrência não fez bem ao Vaticano. Com efeito, de senhora absoluta da Europa com poder de vida e morte até sobre reis, a Igreja Católica viu seu poder mundano e riqueza declinarem de forma acentuada nos últimos cinco séculos. Trata-se de um fenômeno complexo e multifatorial para o qual qualquer explicação que caiba nesta coluna será parcial e incompleta. Destacaria como fator decisivo, além do advento da Reforma, o desenvolvimento das ciências nos últimos 300 anos. Resvalando num positivismo meio ralo, acho que a viabilização de explicações puramente racionais para fenômenos de toda ordem permitiu a criação de um ambiente intelectual no qual a hipótese divina tornou-se dispensável. A partir de finais do século 18, o mundo já podia prescindir de um Deus criador e mantenedor da ordem natural. No 19, os franceses puderam inventar o Estado laico e o anticlericalismo, que seguem cultivando com zelo até hoje. O relativismo e o individualismo condenados pelo papa são os herdeiros dessa tradição.

Não posso dizer que a decadência do catolicismo me desagrade. Acredito até que muitos católicos caóticos concordarão comigo que uma igreja mais fraca que não queime supostos hereges é preferível a uma instituição forte que promova genocídios como o fez com judeus, protestantes e negros. A estes últimos negava até o direito à alma. Sei que é um erro historiográfico julgar atos do passado com a moral de hoje, mas é o próprio Vaticano e não eu quem gosta de propalar que a moral é eterna e incondicionada. Se a diferença entre o certo e o errado é a mesma desde sempre, ou bem Deus não condena a escravidão, ou bem a Igreja Católica nem sempre está do lado do Criador.

Hélio Schwartsman é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

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