Pensata

Hélio Schwartsman

12/05/2005

Tributo à estultice

Vários leitores me pediram para comentar a cartilha "Politicamente Correto & Direitos Humanos", editada pelo governo federal há cerca de um ano e que agora ganhou repentina notoriedade. Graças a um amigo, consegui um exemplar da obra e posso assegurar que se trata da realização inepta de uma idéia estúpida.

Inepta porque ela põe no índex 96 vocábulos legítimos e, para muitos deles, deixa de apresentar alternativas "aceitáveis". Aceite-se, para efeitos de argumentação, que o termo "anão" seja mesmo condenável. Admita-se, também, que todos concordemos em não usá-lo, porque, como diz a cartilha, "as pessoas afetadas pelo nanismo são vítimas de um preconceito peculiar: o de sempre serem consideradas engraçadas". Surge então o problema de como referir-se aos... Será que devemos chamá-los de "portadores de nanismo" ou podemos nos contentar com "baixote" ou um simples "pequeno"? A primeira proposta é prolixa e medicaliza a síndrome. Equivale a chamar o anão de doente. Em algum sentido ele de fato o é, mas pode levar uma vida em quase todos os aspectos "normal". Talvez os "afetados pelo nanismo" não desejem ser a todo instante lembrados de sua condição patológica. Entre a doença e a graça, a segunda me parece até mais simpática. As outras duas sugestões perdem conteúdo empírico, isto é, constituem uma descrição muito menos precisa do fenômeno do que a fornecida com a utilização da palavra "anão". Uma terceira alternativa, que chegou a viger nos EUA, seria "verticalmente prejudicado". É tão ridícula que dispensa refutação.

Outros termos listados como impróprios são "aidético", "barbeiro", "beata", "comunista", "xiita", "funcionário público", "peão".

Na verdade, é a própria idéia de tentar domesticar a linguagem que se revela imbecil. Podemos --e devemos-- adequar o vocabulário que usamos ao contexto sociolingüístico em que ele surge. Eu, por exemplo, não vou, num artigo elevado como este, publicado em tão nobre espaço e lido por tão distinto público, abusar muito de palavras de baixo calão nem de imprecações, embora possa empregá-las em outras situações.

Em algum sentido, o PC (politicamente correto) é inevitável. Se eu estiver escrevendo um artigo científico, não posso aludir a um homossexual como "veado" (mais um termo providencialmente proscrito pela cartilha do governo). Por outro lado, existem contextos em que o chulo, que nada mais é que o politicamente incorreto em seu limite superior, se faz imprescindível. Ou alguém julgaria verossímil uma cena literária de briga de rua em que uma prostituta xinga um homossexual de "uranista" ao que ele retorque com um helênico "hetaira"?

Línguas são organismos vivos e nenhuma higiene verbal será capaz de limpar qualquer idioma das inúmeras injustiças sociais, incorreções geográficas e iniqüidades étnicas que inevitavelmente formam seu substrato. Tomemos o exemplo da palavra "beócio", que o Aurélio define como "curto de inteligência; ignorante boçal". Mas "beócio" é também o gentílico para referir-se ao habitante da Beócia, região da Grécia próxima a Atenas, cujos moradores as elites aquéias da Antigüidade julgavam particularmente burros. (Mais historietas como essa podem ser encontradas na coluna "Outras palavras", que escrevi em 2003).

Pode parecer incrível que o português, idioma surgido na passagem do século 12 para o 13, ainda carregue preconceitos correntes na Grécia do século 5º a.C. De toda forma, está aí a prova de que processos lingüísticos têm dinâmica e evolução próprias que não somos capazes de controlar. São mais ou menos como a História. Karl Marx até achou que poderia prever para onde ela caminharia. Quebrou a cara.

O que fundamenta a ideologia do politicamente correto é a concepção de que qualquer preconceito precisa ser quebrado. Como simpatizante de uma certa iconoclastia, tendo a concordar com a idéia de que todos os conceitos que se nos apresentam como eternos e invioláveis merecem ser questionados. Alguns de fato se mostrarão sólidos, ainda que não imutáveis, outros ruirão à primeira análise. Neste último caso incluo as teorias racistas que tentam fazer com que se extraia de um conjunto específico de genes uma noção de superioridade ou inferioridade. Daí não resulta que possamos afirmar que todos os homens (e mulheres) são rigorosamente iguais e que não existam diferenças biológicas entre grupos étnicos (as variações "raciais" na incidência de algumas moléstias não-relacionadas a estilo de vida ou ambiente já bastam para provar que a diversidade existe).

De modo análogo, reconhecer que teorias e juízos merecem exame não significa chancelar a idéia algo simplista de que todos os preconceitos podem ser quebrados. É preciso, antes de mais nada, explicar o que se entende por preconceito. Vejamos o que o sempre útil Aurélio tem a dizer:

_Preconceito

[De pre- + conceito.]

S. m.

1. Conceito ou opinião formados antecipadamente, sem maior ponderação ou conhecimento dos fatos; idéia preconcebida.

2. Julgamento ou opinião formada sem se levar em conta o fato que os conteste; prejuízo.

3. P. ext. Superstição, crendice; prejuízo.

4. P. ext. Suspeita, intolerância, ódio irracional ou aversão a outras raças, credos, religiões, etc.: O preconceito racial é indigno do ser humano._

Eu diria aqui que o nosso amigo Aurélio faz uma leitura "preconceituosa" de "preconceito", enfatizando suas interpretações negativas e esquecendo o seu lado positivo. Não podemos, afinal, nos esquecer de que o preconceito, compreendido como a operação mental que nos permite abstrair e em seguida generalizar, é um dos responsáveis pelo sucesso evolutiva da humanidade. Com efeito, a capacidade de proceder a generalizações, isto é, de tentar extrair leis gerais de eventos ou objetos particulares, constitui a base do edifício científico e foi um dos principais traços a nos diferenciar de nossos ancestrais menos inteligentes. Isso não significa, é óbvio, que todas as generalizações que ocorram em nossa cachola sejam válidas, corretas ou éticas. A maioria provavelmente não o será. Mas para a natureza tanto faz. Ela não é exatamente moral. Pouco importa se a idéia que me mantém afastado de meus inimigos é justa, desde que eu fique longe deles e sobreviva para espalhar meus genes.

O mundo é um lugar complexo demais para ser explicado por modismos e suas palavras de ordem. O racismo é, sim, uma aberração teórica que deve ser combatida. Daí não se segue que todos os indivíduos que compõem o gênero humano sejam idênticos e indiscerníveis --ainda que todos devam ter os mesmos direitos. Preconceitos são, sim, uma fonte freqüente de mal-entendidos e mesmo de violência. Daí não se segue que possamos --ou devamos-- acabar com o maquinismo cerebral que os possibilita, mesmo porque essa é uma ferramenta essencial para a produção do conhecimento. Patrulhas lingüísticas, como a proposta pela cartilha "Politicamente Correto & Direitos Humanos", devem, em sua inegável boa intenção, ser compreendidas como o tributo que a inteligência paga à estultice. Pior, um imposto periódico, pois, à pág. 13, seus autores nos ameaçam com futuras edições.

Hélio Schwartsman é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

FolhaShop

Digite produto
ou marca