Pensata

Hélio Schwartsman

01/12/2005

Dr. Livingsthon, eu presumo

"Fazer uma lei e não a mandar executar é autorizar a coisa que se quer proibir". A frase é de Armand-Jean du Plessis, mais conhecido como cardeal de Richelieu (1585-1642), que de mandar entendia bastante. Foi ele quem, agindo em nome do rei Luís 13, introduziu o absolutismo em França. Não obstante a velha lição do bom prelado, abundam pelo Brasil leis que são sistematicamente ignoradas. Pior, são desrespeitadas com especial contumácia justamente por aquele que deveria ser o primeiro a cumpri-las, o Estado.

É nesse contexto que eu aplaudo a atitude do juiz mineiro Livingsthon José Machado, da Vara de Execuções Criminais de Contagem, que, desafiando até mesmo uma determinação do Tribunal de Justiça de seu Estado, andava expedindo alvarás de soltura para presos condenados que eram mantidos em delegacias de polícia. Fazia-o amparado na lei e na Constituição. Não é preciso ser um assim chamado "operador do direito" para saber que as condições de encarceramento nas penitenciárias em geral e nos xadrezes em particular violam praticamente todos os direitos humanos afirmados pelo artigo 5º da Constituição e mais especificamente as garantias dadas aos presos pela Lei de Execuções Penais (7.210/84). E é óbvio que pessoas não deveriam poder ser mantidas presas "ao arrepio da lei", para empregar outra expressão cara aos "operadores do direito". Assim sendo, é difícil questionar a legalidade das decisões de Machado.

Por outro lado, porém, parece mais do que claro que a "solução" apresentada pelo magistrado, em que pese preservar direitos individuais dos presos, cria, sobretudo se generalizada, um problema potencialmente sério para a segurança pública, que é um direito social nos termos do artigo 6º da Carta. Um dos condenados soltos por Machado não perdeu muito tempo antes de voltar a delinqüir, estuprando uma mulher.

Da contraposição desses direitos, emergem dilemas. Minha tentação inicial seria fazer prevalecer o direito da coletividade à segurança. Além de os apenados serem em menor número, eles cometeram violações à lei e devem pagar por elas. Soltá-los é reforçar ainda mais a sensação de impunidade, um dos maiores incentivos à criminalidade. O problema desse raciocínio é que ele ignora que o desrespeito aos direitos humanos não é apenas uma ofensa concreta contra uma pessoa mas também uma injúria difusa contra o conjunto da sociedade. Por mais sinistro que tenha sido o crime cometido, seu autor não abandona a condição de ser humano. Negar-lhe as garantias mínimas que lhe foram historicamente atribuídas e encontram tradução na Declaração Universal dos Direitos do Homem constituiria a negação do Direito, um recuo aos tempos em que as diferenças entre pessoas e grupos se resolviam na base da vingança e do "olho por olho, dente por dente" e nos quais rixas e vendetas se perpetuavam.

Deixemos, contudo, esse problema de lado. Meu propósito aqui não era o de comentar a universalização do Direito em Hegel (território em que já ia inopinadamente adentrando) nem de tentar pacificar contradições fundamentais das ciências jurídicas, como a que resulta do choque de prerrogativas igualmente legítimas e por vezes opostas. A questão é que o direito do criminoso a tratamento humano e o direito do pessoal de Contagem à segurança só estão em conflito porque o Estado deixa de cumprir a lei.

No caso dos presos, vai-se-os metendo em penitenciárias e xadrezes sem observar as determinações da Lei de Execuções Penais, como a de que condenados sejam alojados "em cela individual que conterá dormitório, aparelho sanitário e lavatório" (art. 88). Mais do que isso, a alínea "a" do parágrafo único requer que o aposento tenha "aeração, insolação e condicionamento térmico" e a alínea "b" cobra uma área mínima de seis metros quadrados. Poderíamos passar muito tempo discutindo se essas exigências são ou não exageradas. Mesmo que concluíssemos que nem hotéis cinco estrelas oferecem tanto a seus hóspedes, isso não apagaria o fato de que tais prescrições estão inscritas na lei, mas o Executivo, a quem cabe construir e manter penitenciárias, as ignora olimpicamente.

Se esse fosse um comportamento excepcional e isolado, até poderíamos atribuir a inobservância do dispositivo a uma generosidade irrealista por parte dos legisladores. Mas esse está longe de ser o caso. Não parece exagero afirmar que o Estado, aí compreendidos os Poderes Executivo, Legislativo e o próprio Judiciário, é um obstinado descumpridor de leis. Com efeito, chefes de Executivo deixam sistematicamente de pagar precatórios (indenizações determinadas pela Justiça em instância final) e fica tudo por isso mesmo, embora a lei preveja até intervenção para assegurar a quitação dessas dívidas. Estima-se que o valor total de precatórios vencidos e não pagos no país atinja o montante de R$ 100 bilhões, o que dá uma idéia de quão disseminado é o calote dado por União, Estados e Municípios.

Também os legisladores são pródigos em ignorar determinações que eles próprios criaram. Passados quase 20 anos da promulgação da Constituição, o Congresso Nacional ainda está devendo boa parte das leis exigidas pela Carta. Por conta dessa inoperância, ainda não podem ser aplicados mecanismos interessantes como o mandado de injunção, que garantiria o exercício de direitos e liberdades constitucionais mesmo na ausência de norma regulamentadora. Ou seja, o remédio contra a não-regulamentação do mandado de injunção seria um mandado de injunção, o que nos coloca diante da versão jurídica do paradoxo de Russel. Até hoje nossos tribunais não foram capazes de resolvê-lo.

No Judiciário a situação não é muito diferente. Magistrados são conhecidos por ignorar os prazos que a lei lhes dá para julgar. Evidentemente nada lhes acontece. A própria tentativa do TJ mineiro de conceder liminar impedindo genericamente que alvarás de soltura fossem expedidos por Livingsthon Machado é --eu presumo-- manifestamente inconstitucional. O tribunal pode, desde que provocado pelo Executivo ou pelo Ministério Público, mandar desfazer todos os atos do magistrado de Contagem, mas não pode simplesmente impedir "a priori" um juiz de julgar por não gostar das decisões que ele vem tomando. Muito pior, já beirando o tirânico, foi a decisão de afastá-lo do cargo, "para investigações".

Pincelei de forma tão democrática quanto pude alguns exemplos que me parecem particularmente graves de atitudes ilegais do Estado que se tornaram rotineiras. Embora eu não defenda a universalização da atitude de Machado, é inegável que ela foi corajosa e tem o mérito de provocar a discussão sobre a impunidade em que estão envoltos agentes públicos que deixam de cumprir a lei. Como já sugeria Richelieu, acredito que está aí, senão a origem, pelo menos um dos fatores que tornam o Brasil uma espécie de paraíso da impunidade. Quando nem juízes e governantes cumprem a lei fica difícil esperar que cidadãos particulares o façam.

O país está num momento crucial de sua história. A democracia já está razoavelmente consolidada e as instituições já não ruem com um sopro. É hora de decidir se o Brasil vai tornar-se uma República de fato, onde todos são iguais perante leis que são para valer, ou se vai continuar como uma republiqueta pouco séria em que o Judiciário é a arma que os poderosos utilizam contra seus inimigos políticos e com a qual mantêm sob relativo controle o imenso exército de pretos, pobres e desesperados.

Hélio Schwartsman é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

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