Pensata

Hélio Schwartsman

15/12/2005

Do direito de fumar

"Não importa o que diga Aristóteles e toda a filosofia, não há nada como o tabaco: é a paixão das pessoas honestas, e quem vive sem tabaco não é digno de viver. Ele não apenas alegra e purga os cérebros humanos mas também instrui as almas na virtude, e com ele aprendemos a nos tornar homens honestos. Ou não haveis reparado nos modos gentis com que dele nos utilizamos com todas as pessoas, já desde a primeira vez, e como nos alegramos em oferecê-lo à direita e à esquerda, onde quer que nos encontremos? Nem ao menos esperamos que no-lo peçam, e corremos à frente do desejo das gentes: tanto é verdade que o tabaco inspira sentimentos de honra e de virtude a todos os que dele se valem".

A passagem acima, embora numa tradução meio capenga, abre o magistral "D. Juan" de Molière. O tom é, evidentemente, de farsa. Quem profere as exuberantes palavras é Sganarelle, o personagem cômico da peça. Mais do que isso, Aristóteles não apenas jamais escreveu uma única linha sobre o tabaco como nem sequer conheceu essa planta nativa das Américas, que só começou a insinuar-se pela Europa depois de 1500. No mais, exceto por uns poucos anos no início do século 16, quando médicos apressados ainda receitavam o recém-chegado tabaco como panacéia, ninguém jamais achou que fumar fosse saudável. Como em toda sátira, porém, também estão presentes elementos verdadeiros. O tabaco, a exemplo das demais drogas, proporciona prazer a quem o usa e, em algum grau, favorece a sociabilidade entre fumantes.

Fui buscar nas páginas de um clássico esse pequeno louvor aos cigarros por conta da interessante reportagem da Luciana Coelho (Folha, 4/12 --exclusivo para assinantes) sobre o surgimento de focos de resistência à onda antitabagista que varre os EUA e, em escala ligeiramente reduzida, o mundo. Figuras influentes na mídia estão denunciando a "ditadura da saúde" e reclamando o reconhecimento do direito do indivíduo de fumar se este for o seu desejo.

Evidentemente, coloco-me aqui do lado das liberdades. Depois de ter defendido a legalização das drogas e a regulamentação da eutanásia, não poderia furtar-me a apoiar também os fumantes que desejem obstinar-se. Mas, diferentemente dos que se insurgem contra a campanha antitabagista, não a vejo com repulsa. Parto do princípio de que nunca é errado divulgar os dados científicos disponíveis a respeito do que quer que seja. Muito embora as pessoas não costumem começar a fumar (ou usar qualquer outro produto psicoativo) pesando racionalmente os prós e contras da decisão, deixando-se, ao invés disso, levar por impulsos emocionais e apelos sociais, boa informação nunca é demais. No mínimo, o Estado poderá depois dizer "eu avisei".

Assim, é forçoso reconhecer que, depois que alguém se lançou no vício e dele aprende a extrair prazer --o primeiro cigarro experimentado provoca inevitavelmente asco--, manter-se fumante pode ser, sim, uma decisão racional. A vida, afinal, não se mede apenas em comprimento, mas também em "largura". Se o indivíduo julga que o tabaco lhe dá tantas alegrias que vale a pena sacrificar alguns anos por elas (e normalmente anos de menor atividade senão de decrepitude), quem sou eu para discordar? A primeira de todas as liberdades deve ser a de atribuir um valor à própria existência.

O foco da propaganda antifumo, contudo, vem sendo outro. Os sanitaristas insistem é nos direitos dos não-fumantes. Há duas linhas de argumentação. No plano mais imediato, dizem que a fumaça dos tabagistas não ameaça apenas a saúde deles próprios, mas também a dos que o cercam. De modo mais indireto, insistem que o fumante também causa prejuízos à sociedade, quando as doenças provocadas pelo hábito passam a onerar o sistema de saúde ou quando provocam aposentadorias precoces.

Quanto ao primeiro ponto, é preciso reconhecer que faz algum sentido. Ainda não está muito bem estabelecido quão nocivo é o tabaco para os chamados fumantes passivos, mas vão crescendo os indícios de que seu impacto pode ser importante.

Duas experiências trouxeram dados bastante interessantes. As cidades norte-americanas de Helena, em Montana, e Pueblo, no Colorado, adotaram legislações ultra-restritivas ao fumo em lugares públicos e verificaram uma queda significativa no número de ataques cardíacos. Em Pueblo, a diminuição foi de 27%. Nos 18 meses que antecederam a "proibição", adotada em julho de 2003, os hospitais locais registraram 399 casos, contra 291 em igual período após a adoção da nova lei. O fenômeno não se repetiu em cidades vizinhas.

Também em 2003, vigorou durante seis meses em Helena uma limitação forte ao tabaco. A taxa de infartos agudos do miocárdio baixou 40%, passando de 40 para 24. Mais surpreendente, suspensa a proscrição, os ataques cardíacos voltaram a subir.

A hipótese médica para explicar esses eventos é a de que substâncias contidas na fumaça do cigarro precipitam reações inflamatórias no endotélio (as paredes internas dos vasos sangüíneos), o que constitui um importante fator de risco para infartos e acidentes vasculares cerebrais (AVCs).

A novidade desses estudos é que, diferentemente dos anteriores, eles não procuraram medir a ação de longo prazo do fumo passivo --sobretudo em relação ao câncer--, mas suas conseqüências mais imediatas no sistema cardiovascular. São, é claro, trabalhos de baixo nível de evidência, que recomendam a realização de mais pesquisa, mas que não bastam para extrair políticas públicas. Como bom cético que sou, manifesto ainda meu estranhamento com o fato de que estudos semelhantes não tenham surgido em países como a Noruega e a Irlanda, que também adotaram nos últimos anos veementes legislações nacionais contra o fumo em lugares públicos. Seja como for, se os trabalhos norte-americanos forem confirmados por pesquisas maiores, não vejo como contestar o direito da sociedade de impor restrições de vulto contra o tabaco em áreas comuns. O direito do fumante, que é incontestável, não pode sobrepor-se ao direito de não-fumantes de não se expor a uma fumaça que precipitaria ataques cardíacos.

Mais complicada é a tese de que não é justo que as doenças dos fumantes impliquem custos extras para a sociedade. Acredito que o problema pode ser parcialmente equacionado com a elevação da carga tributária sobre o fumo. No limite, poderíamos até fazer a conta "fechar", repassando ao conjunto dos tabagistas as despesas adicionais. Mas não creio que precisemos ser tão "equânimes" na divisão, ou precisaríamos cobrar a mais também de todos aqueles que apresentem comportamentos que favoreçam o surgimento de determinadas doenças, como obesos, praticantes de asa delta etc. A filosofia por trás de todo sistema previdenciário é um pouco comunista: cada um contribui segundo suas possibilidades e se utiliza segundo suas necessidades.

O tabaco é decerto um grave problema de saúde pública, mas não deve servir de pretexto para que se apliquem os impulsos liberticidas tão em voga atualmente. Cada um deve ser livre para decidir seu próprio destino com a condição de não prejudicar os demais para além de um nível que se considere tolerável. No mais, o fumo tem uma rica história cultural que encontra expressão na literatura --como tentei mostrar citando Molière--, na filosofia, no cinema, na fotografia etc.. Vale a pena recomendar aqui o excelente "Cigarros são Sublimes", de Richard Klein. Precisamos, no mínimo, nem que seja por seu valor estético, respeitar essa tradição. Não faz sentido tentar demonizar os cigarros com argumentos morais, manipulação dos dados estatísticos e campanhas de caráter mais propagandístico do que educativo. Aliás, execrá-los demais costuma ser um excelente convite para que os jovens o experimentem.

Em tempo, quem escreveu estas linhas é um ex-fumante que adora o cheiro dos cigarros e não se arrepende (pelo menos por ora) de ter podido fruir dos prazeres fumígenos assim como não se arrepende de ter conseguido abandonar esse hábito.

Hélio Schwartsman é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

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