Pensata

Hélio Schwartsman

22/12/2005

Computadores censurados

A Câmara de vereadores de São Paulo aprovou --e o prefeito José Serra sancionou-- uma lei que dá ao Executivo paulistano poderes absolutos para censurar os computadores da rede municipal conectados à internet. O parágrafo único do artigo primeiro da lei nº 14.098/05, de autoria do vereador Domingos Dissei (PFL), é de uma clareza chocante: "Sites que tenham conteúdo de sexo, drogas, pornografia, pedofilia, violência e armamento, dentre outros, a critério do Executivo, devem ser proibidos".

A justificativa, como quase sempre nesses casos, é controlar o acesso de jovens a sites que possam conter material impróprio, como sexo e drogas. Admitindo-se que esse gênero de restrição seja válido --pretendo voltar a esse ponto mais adiante--, cabe perguntar por que o diploma não limitou a instalação de filtros de conteúdo às máquinas colocadas em escolas e Centros Educacionais Unificados (CEUs), estendendo-a também aos equipamentos de bibliotecas e telecentros, os quais são utilizados por adultos?

Embora a norma ainda não tenha sido regulamentada, deixando assim muitas dúvidas acerca de como se dará sua implementação, parece claro que ela avança o sinal. Pela letra do texto legal, alguém que pretenda dedicar-se ao apaixonante estudo da pornografia, tema que já produziu obras clássicas como a de Alexandrian ("História da Literatura Erótica", Ed. Rocco), estará impedido de fazê-lo através dos computadores de uma biblioteca municipal. Dependendo da "eficiência" dos filtros utilizados, até um médico poderá experimentar dificuldades para consultar um site de urologia (sexo) ou de farmacologia (drogas) num computador de hospital municipal. Se os vereadores e o prefeito imaginam que casos como esses constituem exceções à norma, era necessário que tais exclusões estivessem enunciadas na lei. Não estão.

No mais, não me parece haver nada de intrinsecamente errado num jovem interessado em ciências querer saber como se constroem bombas atômicas ou quais os agentes utilizados em armamento químico e biológico. O local indicado para tentar satisfazer essas curiosidades é justamente o computador da escola.

A censura é sempre uma coisa estúpida, quando ela é adotada linearmente então, sem considerações relativas a quem consulta ou ao tipo de pesquisa, torna-se motivo de piada. Para além de equiparar os computadores da Prefeitura de São Paulo à internet chinesa ou saudita, países que fazem de tudo para censurar a rede, a iniciativa tende a ser coroada de fracasso. A maioria dos sistemas de filtragem trabalha bloqueando sites dos quais constem palavras-chave pré-programadas. Assim, se o equipamento municipal não oferecer acesso a páginas que contenham o vocábulo "sexo", por exemplo, a garotada poderá ainda assim chegar a imagens pornográficas descobrindo como referir-se a esse termo em húngaro --"szex" ou "nemiség"-- ou qualquer outro idioma menos óbvio e buscando os sites correspondentes. E esse é apenas um dos inúmeros meios de burla aos filtros. É uma questão de dias até que a molecada aprenda a evitar as restrições. Para cada nova tranca inventada sempre se cria um pé-de-cabra capaz de destruí-la. Aliás, uma das principais virtudes da internet reside exatamente no fato de a rede ser bastante refratária a controles estatais.

O episódio também nos remete a uma discussão mais republicana acerca do viés de classe que a norma municipal introduz. Com efeito parece haver alguma injustiça no fato de que, enquanto representantes das camadas médias, donos de computadores pessoais não precisam submeter-se a nenhuma forma de censura, os mais pobres, que só podem acessar a rede com computadores públicos, tenham de sujeitar-se aos caprichos do Executivo.

E não é só. Quem vai definir o que é ou não aceitável? Com base em que critérios? Eu, por exemplo, não faço objeção a que meus filhos vejam praticamente nada em matéria de sexo, já outros podem legitimamente considerar a Bela Adormecida uma história pornográfica com requintes de pedofilia (ela tinha apenas 15 anos quando se faz penetrar pelo fuso da roca), preferindo manter seus rebentos afastados desse tipo de literatura. Inventar uma suposta média das opiniões e erigi-la em critério é algo que não faz muito sentido. Para começar, o mais provável é que essa suposta média traduza as convicções de uma pequena minoria, deixando contrariados os amplos contingentes dos mais liberais e dos mais conservadores.

Cabe também perguntar se próprias crianças não devem ter voz nessa discussão. Ainda não me tornei anarquista o bastante a ponto de defender que garotos de seis ou sete anos devem ser donos de seus próprios narizes. Mas me parece que essa nossa forma dicotômica de reduzir o mundo a maiores e menores de 18 anos já se revela contraproducente. O aprendizado e a própria aquisição da racionalidade se fazem por etapas. Crianças de um ano são reconhecidamente incapazes até de andar sem a atenta supervisão dos responsáveis, mas parece absurdo tentar controlar a sexualidade de um jovem de 17. Faria mais sentido, acredito, que a lei estabelecesse maioridades diferenciadas. Aos 12, por exemplo, a criança já deveria ter liberdade para escolher os títulos que vai ler; aos 14 teria direito a tomar decisões sobre tratamento médico a que tenha de submeter-se; já a maioridade sexual poderia vir com 14 ou 16, de par com o direito de voto e quem sabe o de conduzir veículos. Os 18 anos inaugurariam a maioridade civil, que dá direito a casar-se e a abrir empresas mesmo sem o consentimento dos pais. Essa idéia de etapas não é estranha à nossa legislação, que só permite a maiores de 35 anos candidatar-se à Presidência da República e a outros cargos eletivos. Não vejo razão para não aprofundar essa tendência, adequando-a à rápida transformação por que passa a sociedade.

É claro que ainda não resolvemos nosso problema principal. Aliás, nem creio que ele tenha solução. Talvez seja mais adequado falar em respostas menos piores. Até eu devo admitir que algum tipo de controle pode ser necessário no ensino fundamental (crianças de 7 a 15 anos). Mas aceitar isso não implica criar uma legislação que estabeleça a censura. Parece-me muito mais razoável deixar que a vigilância seja exercida por algum professor que acompanhe os jovens na sala de internet. Muitas vezes, basta a presença de um adulto para evitar os abusos mais gritantes. E, se alguém deve desempenhar as tarefas de censor, é melhor que seja uma pessoa que pelo menos conheça as crianças, e não vereadores ou burocratas da prefeitura.

De resto, algumas coisas nunca mudam. A curiosidade de jovens em relação ao sexo, às drogas e a tudo o que é proibido sempre existiu e sempre existirá. Num certo sentido, é saudável que seja assim. Cada geração costuma preencher essa lacuna com os instrumentos que tem à mão, sejam as revistas de mulher pelada e os chamados "catecismos" de outrora, seja a internet hoje.

E ninguém jamais conseguiu impedir por muito tempo que esse tipo de material bem como outras idéias rejeitadas pelo "statu quo" circulasse. E tentaram. Prova-o a longa história da censura.

Hélio Schwartsman é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

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