Pensata

Hélio Schwartsman

22/06/2006

A vida fácil

Para os dicionários, "homem público" é o indivíduo que se consagra à política ou que ocupa um alto posto no Estado. Já "mulher pública" é apenas uma marafona. Mais do que preconceito de gênero, a diferença de tratamento revela também o fascínio exercido pela prostituição sobre a sociedade e, por extensão, o idioma. Com efeito, das 32 locuções com a palavra "mulher" registradas pelo Houaiss, 19 (60%) são um eufemismo para "puta". O mesmo dicionário, no verbete "meretriz", traz 121 sinônimos para o termo, sem pretender esgotá-los.

Faço essas reflexões a propósito da prisão, nos EUA, da brasileira Andréia Dias Schwartz, acusada de comandar uma rede de prostitutas em Nova York. Os tablóides da cidade não tem falado de outro assunto. A primeira pergunta que me ocorre é: como pode a chamada "profissão mais antiga do mundo" ser considerada crime? Ou, como colocou o comediante norte-americano George Dennis Carlin, "por que é ilegal vender algo que pode ser dado de graça totalmente dentro da lei?"

O tratamento jurídico dispensado às mulheres da vida varia bastante. Há desde países islâmicos em que pécoras podem ser condenadas à morte até algumas nações ocidentais, como Holanda, Alemanha, Suíça e Nova Zelândia, em que a atividade é perfeitamente legal e está regulamentada. Michês de ambos os sexos pagam taxas e impostos, têm direito aos benefícios sociais oferecidos a todos os trabalhadores e podem anunciar livremente seus serviços.

A grande maioria dos países ocidentais, contudo, adota uma posição menos liberal. Não chega a proibir uma pessoa de entregar-se por dinheiro, mas veda o proxenetismo, isto é, explorar comercialmente a libidinagem de terceiros. É nessa categoria que se inscrevem Brasil, França, Canadá, Dinamarca, Costa Rica, entre outros.

Os EUA, a exemplo do que acontece com a pena de morte, despontam como um farol de obscurantismo incrustado em meio ao Ocidente. Na América, a prostituição é ilegal em todos os Estados, exceto Rhode Island e alguns condados de Nevada.

Há situações ainda mais curiosas. No Japão, a comercialização do intercurso vaginal é proibida, mas não a da felação (Clinton se daria bem por lá!). Na Suécia, uma rapariga pode vender sexo, mas o potencial cliente está, desde 1999, legalmente proibido de comprá-lo. A lógica é proteger as mulheres, vistas como vítimas do desfavor econômico.

As coisas ficam ainda mais confusas se analisarmos o tratamento dado à prostituição através da história. O primeiro erro seria imaginar que caminhamos de uma situação de total rejeição para uma de maior tolerância.

Entre os antigos, vender o corpo chegou a ser um dever religioso. Esse hábito escandalizou o historiador grego Heródoto, que escreveu: "Vejamos agora o costume mais vergonhoso dos babilônios. É preciso que cada mulher do país, uma vez em sua vida [normalmente antes do casamento], se una a um homem estrangeiro no templo de Afrodite [é como Hérodoto traduz Ishtar] (...) Quando uma mulher está sentada ali [nas cercanias do templo], tem de esperar para poder voltar a casa que um estrangeiro lhe tenha jogado dinheiro nos joelhos e se tenha unido a ela no interior do templo (...) Dá-se a soma de dinheiro que se quer, e a mulher não tem absolutamente o direito de recusar o homem, pois o dinheiro é sagrado. (...) As que são belas e têm um belo corpo podem voltar rapidamente para casa; mas as feias são obrigadas a ficar ali por muito tempo, sem poder satisfazer a lei. Algumas ficam lá por três ou quatro anos".

A reação de Heródoto não significa que os gregos condenassem a venda do sexo. Muito pelo contrário, entre as grandes realizações de Sólon, o legendário legislador ateniense, é sempre citada a criação dos bordéis públicos --a prostituição de Estado-- a preços módicos (um óbolo). Atenienses viam a iniciativa como parte integrante de sua democracia.

De fato, as casas de tolerância parecem ter desempenhado um papel importante para evitar estupros e outras fontes de conflito social. É que cidadãos costumavam casar-se só lá pelos 30 anos. Se um jovem quisesse praticar relações heterossexuais antes disso, tinha de recorrer às "pórnai" (palavra cujo radical está no termo "pornografia") ou às escravas. Os prostíbulos oficiais permitiam que os menos ricos também fruíssem dos prazeres da carne.

Mesmo na Idade Média, que costumamos ver como período de trevas e intolerância, a atividade era bem aceita. O próprio santo Agostinho afirmava que a prostituição era necessária. Ajudava a controlar males maiores como sodomia e masturbação. Foi a partir do século 16, com o advento da Reforma e a chegada da sífilis, provavelmente importada da América, que uma atitude mais dura contra o meretrício passou a predominar.

De minha parte, acho que não cabe ao Estado tentar definir o que duas pessoas maiores de idade podem fazer entre quatro paredes. Não só é filosoficamente errado tentar disciplinar esse tipo de relação como também é atitude fadada ao fracasso, a exemplo das leis norte-americanas contra sexo oral e anal.

Também não me convence o discurso segundo o qual prostitutas são vítimas que devem ser protegidas por iniciativas estatais como a lei sueca que permite a venda de serviços sexuais mas criminaliza quem procura por eles. É claro que, num certo sentido, a maioria das mulheres e homens que se dedicam a essa atividade o fazem por falta de melhores opções. Na visão de um certo feminismo, porém, o meretrício nada mais é do que uma espécie de estupro determinado pela pobreza. O problema desse raciocínio é que ele se aplica a toda e qualquer profissão sem muito "glamour". Não fosse a necessidade imposta por uma situação econômica adversa, quantos escolheriam ser cortadores de cana, lixeiros, limpa-fossas? Imagino que ainda menos do que aquelas que abraçam a chamada vida fácil. Vamos então tornar ilegal a contratação de bóias-frias e passar a perseguir judicialmente os que procuram por serviços de esgotamento sanitário?

Por mais que algumas feministas insistam em negá-lo, há mulheres que encontram prazer em vender seu corpo. Para muitas outras --possivelmente a maioria--, a relação custo-benefício não é tão má. Há também, evidentemente, aquelas que são violentamente exploradas e criminosamente vendidas como escravas sexuais. São males que precisam ser combatidos em sua especificidade. Parece-me, aliás, muito mais fácil fazê-lo se a prostituição for legalizada e regulamentada, saindo da penumbra que hoje a envolve. De toda forma, a delinqüência que cerca a atividade não implica que devamos subtrair à mulher o direito de dispor livremente do próprio corpo, nem que seja para alugá-lo ou vendê-lo. Essa pretensão, aliás, parece-me muito mais uma negação dos ideais feministas do que sua afirmação.

É difícil dizer se o meretrício é ou não a profissão mais antiga do mundo. A favor dessa tese há evidências zoológicas, como a de que macacos bonobos (nossos primos mais próximos) trocam favores sexuais por vantagens materiais. Contra a hipótese existem raciocínios mais legalistas. Só se pode falar em venda do corpo depois do advento do dinheiro, que é posterior à agricultura e ao comércio, os quais engendraram algumas ocupações especializadas. Seja como for, acho improvável que alguma lei consiga refrear uma transação comercial que é almejada pelas duas partes envolvidas. Se há algum remédio contra os males associados à prostituição, é obter um desenvolvimento social tal que permita que apenas quem realmente deseja se dedique a esse ofício.

Hélio Schwartsman é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

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