Pensata

Hélio Schwartsman

29/06/2006

Mercadores de órgãos

Na coluna da semana passada, discorrendo sobre a prostituição, citei a frase "por que é ilegal vender algo que pode ser dado de graça totalmente dentro da lei?", atribuída ao comediante norte-americano George Dennis Carlin. Ato contínuo, o leitor Roberto Takata estocou: "Isso significa que a venda de órgãos humanos deveria ser permitida (uma vez que a doação é permitida e incentivada) ou mesmo o comércio de bebês (uma vez que é permitido aos pais darem sua criança para adoção)?" Aceito a provocação.

Talvez eu vá chocar alguns leitores, mas não vejo problemas maiores na comercialização de órgãos. Já em relação à venda de bebês, acredito que haja, sim, um impeditivo ético. Agora só falta explicar por quê.

O ponto central de meu raciocínio é a convicção filosófica de que cada indivíduo deve ser livre para dispor de seu próprio corpo. Mais do que isso até, a maioria de nós extrai seu sustento alienando partes de si mesmo. Um aluga sua força de trabalho para o empregador, outro faz sexo em troca de dinheiro, e um terceiro prefere vender seu rim. No fundo, a principal diferença entre o primeiro e o terceiro é que este recebe à vista. Cada qual tem seus próprios valores e apetites e é o único capacitado para julgar quanto está disposto a sacrificar e a que preço.

A mesma lógica não se aplica ao tráfico de bebês pela simples razão de que o indivíduo só pode dispor livremente de si mesmo, não de terceiros. Ignorar essa regra violaria o imperativo categórico kantiano que determina que tratemos nossos semelhantes como sujeitos e não como meios.

Posso legitimamente vender esperma a um banco de sêmen, comprar um óvulo ou até contratar uma barriga de aluguel para gerar um filho, mas o bebê, a partir do nascimento com vida, é um titular de direitos idênticos aos meus. O Estado não pode admitir que ele seja objeto de compra e venda, sob pena de reinstaurar um tipo de escravidão.

Um supermercado de crianças no qual cada item venha com uma etiqueta de preço e um código de barras é um pesadelo bioético. Mas, só para complicar um pouco mais a questão, pergunto ao leitor se é tão errado assim que um casal infértil ansioso para amar um filho se disponha a pagar alguns milhares de dólares por um bebê (valor não muito diferente daquele gasto num parto em hospital particular). E a mãe biológica que aceita dinheiro para entregar seu filho, mas convicta de que lhe está assegurando um futuro melhor, será que merece ir para a cadeia?

Voltando aos transplantes, é claro que o problema não é tão simples como minha primeira abordagem pode ter dado a entender. Se a única forma de obter um órgão fosse recorrer ao "mercado" viveríamos uma situação a meu ver absolutamente indesejável em que apenas os mais ricos teriam acesso a esse gênero de terapia. Ocorre que não precisamos "privatizar" inteiramente o o sistema. Admitir doações intervivos mediante pagamento não implica pôr um fim à atual rotina pela qual os órgãos provenientes de cadáveres são distribuídos através de uma lista pública, à qual todos têm as mesmas chances de acesso, independentemente de renda ou conexões políticas (em teoria, é claro).

Outra objeção sempre levantada quando se fala em comercialização de órgãos prega que uma pessoa com dificuldades econômicas se veria compelida a vender uma parte de si mesma para resolver seu problema, no que configuraria uma espécie de extorsão orgânica. Essa é, evidentemente, uma tremenda falácia. Muita gente passa por constrangimentos financeiros (a maioria da população, ouso dizê-lo), mas nem por isso sai por aí roubando, se prostituindo ou vendendo pedaços do corpo e filhos no mercado negro (que já existe). Ainda que muitos ficassem tentados a trocar um rim por alguns milhares de reais, não vejo por que tirar-lhes o direito de decidir por si mesmos, o que, de resto, teria como subproduto a melhora da qualidade de vida de milhares de pacientes renais crônicos e de alguns hepatopatas terminais que poderiam beneficiar-se de transplantes parciais de fígado.

Existe um outro sofisma, sempre repetido, segundo o qual a criação de um mercado de órgãos estimularia assassinatos. Por essa lógica, deveríamos proibir os seguros de vida, o mais direto dos incentivos ao homicídio. Crimes relacionados à doação, como o tráfico ilegal e a retirada não-autorizada, devem ser combatidos em sua especificidade. "Abusus non tollit usus", diziam os romanos.

A legislação brasileira, contudo, veda inteiramente a comercialização de órgãos, no que imita diplomas da vários países. Não vou abordar aqui as razões pelas quais a simples idéia de vender um rim ou um pedaço do fígado nos causa tanta ojeriza. Percebo, entretanto, uma certa assimetria aqui. Se o médico e sua equipe podem ser remunerados por realizar um transplante, se o hospital e os laboratórios que produzem as drogas imunossupressoras também ganham com o procedimento, por que só o doador deve ser excluído dos lucros? Se é o altruísmo que deve animar o processo, por que não aplicá-lo a todas as partes envolvidas?

No Brasil, a regulação é dada principalmente pela lei nº 9.434/97 modificada pela 10.211/01. Ela prevê, para quem compre ou venda tecido, órgão ou parte, de 3 a 8 anos de reclusão. Na mesma pena incorre quem intermedeia, facilita ou aufere vantagem com a transação. O médico que faz a cirurgia sabendo-a em desacordo com esse tópico da legislação pega de 1 a 6 anos. Para garantir que não se façam negócios por debaixo do pano, doações intervivos só são permitidas entre cônjuges e parentes consangüíneos até o 4º grau (inclusive). Nos demais casos, exige-se autorização judicial (exceto para doação de sangue e medula óssea).

A peça até que tenta formar um todo coerente, mas o resultado deixa a desejar. Antes de mais nada, não faz muito sentido condenar alguém que tenta garantir a própria sobrevivência. O Direito qualifica essa situação como estado de necessidade e costuma isentar de pena autores de crimes cometidos nessa condição. No mais, ela burocratiza demais os procedimentos para doações eventualmente legítimas. Se eu quiser fornecer um rim para meu melhor amigo ou para um parente próximo não-consangüíneo (enteado, madrasta, cunhado, por exemplo), preciso da autorização de um magistrado. E o tempo da Justiça, que no Brasil se mede em anos (semanas, vá lá, no caso de emergências), não é o tempo da medicina, que é dado em horas.

As normas também dificultam uma nova modalidade de transplante, as doações pareadas, que são consideradas éticas mesmo segundo os critérios mais conservadores. Nesse tipo de procedimento, junta-se um par com parentesco mas sem histocompatibilidade com outro nas mesmas condições. Se houver compatibilidade cruzada (isto é, o doador do primeiro par com o receptor do segundo e vice-versa), realizam-se as duas cirurgias concomitantemente. Todos saem felizes e a fila diminui. No Brasil, seria preciso acionar a Justiça para realizar a dupla troca.

Não estou entre os que acreditam que o mercado é capaz de resolver todos os males. Freqüentemente, tudo o que ele faz é adicionar novas complicações às que já existiam. Mas não vejo nenhuma razão para impedir alguém de vender a um desconhecido tecidos ou órgãos que podem perfeitamente ser dados de graça a um parente. Por que o gesto altruístico e desinteressado seria melhor do que o pecuniariamente motivado? Quem doa órgão a um parente ou mesmo o bom samaritano que oferece de graça parte de si a um completo desconhecido não está tentando aplacar sua própria consciência ou obter uma vaguinha no céu? Essas são recompensas que talvez não possam ser exprimidas monetariamente, mas que, nem por isso, deixam de ter alto valor. Será que existe mesmo um gesto desinteressado?

Parece-me tão mais simples e honesto admitir que este é mesmo um mundo imperfeito no qual virtualmente todas as relações são mediadas por interesses materiais ou psíquicos e, de posse desse diagnóstico, tentar promover o maior grau possível de satisfação para o maior número possível de pessoas.

Hélio Schwartsman é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

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