Pensata

Hélio Schwartsman

03/08/2006

A Gramática Universal

--Davi-ê, vem ver eu jogar no computador! Agora eu já consigo passar para a fase duas.

--Ian-(h)ê, a mamãe tá chamando pra almoçar!

Essas são frases típicas de meus filhos gêmeos, Ian e David, agora com quatro anos e meio. Já há alguns meses venho prestando atenção no "ê" que eles pospõem aos próprios nomes quando chamam um ao outro. Até procurei hipóteses alternativas, mas estou cada vez mais convicto de que esse "ê" por eles utilizado marca um vocativo, um caso de declinação que se perdeu no português. Prova-o o fato de que a intrigante letrinha desaparece em estruturas nas quais o nome próprio se torna sujeito ou objeto, como: --O David me mordeu. Ou --Papai-ê, briga com o Ian que ele me bateu.

O que chama a atenção aqui é que eles não deveriam ter a menor noção do que seja uma declinação. Eu juro que nunca tentei ensinar-lhes latim ou grego clássico, línguas que preservam a característica de alterar a "terminação" dos nomes dependendo da função sintática que desempenhem na sentença --para o grego, os casos de declinação são cinco: nominativo (sujeito), vocativo (interpelação), acusativo (objeto direto), genitivo (posse ou origem) e dativo (objeto indireto), no latim, acrescenta-se a estes o ablativo (origem, instrumento, afastamento, matéria).

Ainda que não o saibam, os meninos não só estão pensando gramaticalmente como ainda resgataram de forma intuitiva uma distinção da qual no português só ficaram resquícios. Tal experiência reforçou ainda mais minhas simpatias pela teoria da Gramática Universal, segundo a qual seres humanos já nascem equipados com um "software" lingüístico em seus cérebros, isto é, dotados de alguns princípios gramaticais comuns a todos os idiomas. Essa idéia não é exatamente nova. Ela existe pelo menos desde Roger Bacon (c. 1214 1294), o "pai" do empirismo e "avô" do método científico, mas foi desenvolvida e popularizada pelo lingüista norte-americano Noam Chomsky. Embora ainda seja objeto de acres disputas, vem ganhando apoio da neurociência.

Há de fato boas evidências em favor da tese. A mais forte delas é o fato de que a linguagem é um universal humano. Não há povo sobre a terra que não tenha desenvolvido uma, diferentemente da escrita, que foi "criada" de forma independente não mais do que meia dúzia de vezes em toda a história da humanidade. Também diferentemente da escrita, que precisa ser ensinada, basta colocar uma criança em contato com um idioma para que ela o aprenda quase sozinha. Mais até, o fenômeno das línguas crioulas mostra que pessoas expostas a pídgins (jargões comerciais normalmente falados em portos e que misturam vários idiomas) acabam desenvolvendo, no espaço de uma geração, uma gramática para essa nova linguagem. Outra prova curiosa é a constatação de que bebês surdos-mudos "balbuciam" com as mãos exatamente como o fazem com a voz as crianças falantes.

O principal argumento lógico usado por Chomsky em favor do inatismo lingüístico é o chamado Pots, sigla inglesa para "pobreza do estímulo" (poverty of the stimulus). Em grandes linhas, ele reza que as línguas naturais apresentam padrões que não poderiam ser aprendidos apenas por exemplos positivos, isto é, pelas sentenças "corretas" às quais as crianças são expostas. Para adquirir o domínio sobre o idioma elas teriam também de ser apresentadas a contra-exemplos, ou seja, a frases sem sentido gramatical, o que raramente ocorre. Como é fato que os pequeninos desenvolvem a fala praticamente sozinhos, Chomsky conclui que já nascem com uma capacidade inata para o aprendizado lingüístico. É a tal da Gramática Universal.

O cientista cognitivo Steven Pinker, ele próprio um ferrenho defensor do inatismo, extrai algumas conseqüências interessantes da teoria. Para começar, ele afirma que o instinto da linguagem é uma capacidade única dos seres humanos. Todas as tentativas de colocar outros animais, em especial os grandes primatas, para "falar" seja através de sinais ou de teclados de computador teriam dado errado. Os bichos não teriam desenvolvido competência para, a partir de um número limitado de regras, gerar uma quantidade em princípio infinita de sentenças. Para Pinker, a linguagem (definida nos termos acima) é uma resposta única da evolução para o problema específico da comunicação entre caçadores-coletores humanos.

E, se a linguagem como a compreendemos é essencialmente humana, iniciativas como a do Seti (Busca por Inteligência Extraterrestre, na sigla inglesa) são um desperdício de recursos. Seria como se os elefantes lançassem uma procura por outros seres dotados de tromba no universo e descartassem como inferiores toda e qualquer espécie sem o apêndice.

Outro ponto curioso e que me interessa particularmente é o que diz respeito ao domínio da gramática. Se ela é inata e todos a possuímos, não faz muito sentido classificar como "pobre" a sintaxe alheia. Na verdade, aquilo que nos habituamos a chamar de gramática, isto é, as prescrições estilísticas que aprendemos na escola são o que há de menos essencial no complexo fenômeno da linguagem. Não me parece exagero afirmar que sua função é precipuamente social, isto é, distinguir dentre aqueles que dominam ou não um conjunto de normas mais ou menos arbitrárias que se convencionou chamar de culta. Nada contra o registro formal, do qual, aliás, tiro meu ganha-pão. Mas, sob esse prisma, não faz tanta diferença dizer "nós vai" ou "nós vamos". Se a linguagem é a resposta evolucionária à necessidade de comunicação entre humanos, o único critério possível para julgar entre o lingüisticamente certo e o errado é a compreensão ou não da mensagem transmitida. Uma frase ambígua seria mais "errada" do que uma ferisse as caprichosas regras de colocação pronominal, por exemplo.

Embrenho-me por essa seara para registrar minha decepção no que diz respeito ao ensino do idioma. Falo não apenas do Brasil mas de todo o mundo. Se a tese da Gramática Universal é correta e acho que é, somos todos lingüistas natos. Assim, desenvolver nossas capacidades nesse campo e refletir sobre o idioma e o próprio fenômeno lingüístico deveria ser uma atividade antes de mais nada instigante e jovial. Talvez um pouco menos prazenteira do que o sexo, outro instinto humano, mas pelo menos igualmente natural. Entretanto, por algum desvio histórico, o estudo do idioma nativo acabou convertendo-se numa pantomima na qual professores pouco motivados tentam ensinar a um aluno desinteressado um punhado de regras que têm pouca para não dizer nenhuma importância.

Talvez fosse mais proveitoso abandonar por alguns instantes as sutilezas da nomenclatura gramatical oficial para tentar despertar a atenção dos jovens para o verdadeiro monumento biológico, cultural e histórico que constitui o idioma. Se um estudante não se interessa pelo que já está naturalmente talhado para fazer, o mais provável é que o problema esteja no professor ou nos conteúdos que ele procura transmitir.

Errei -- Na coluna da semana passada, afirmei que os filisteus da Bíblia são os ancestrais dos modernos palestinos. Não são. Eles apenas deram o nome hoje usado pelos árabes para a região. As melhores evidências arqueológicas sugerem que os filisteus eram um povo que veio do mar, possivelmente de origem indo-européia, e se instalou na área por volta de 1180 a.C. Viviam em estado de guerra permanente com os hebreus e outras populações. Perderam sua independência em 732 a.C. e passaram a ser controlados por diversos povos, incluindo assírios, babilônios, judeus, gregos e romanos. Todos os traços dos filisteus como povo ou grupo étnico desapareceram.

PS -- Em virtude de mais uma prova de árabe, não poderei escrever a coluna da próxima semana.

Hélio Schwartsman é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

FolhaShop

Digite produto
ou marca