Pensata

Hélio Schwartsman

27/06/2002

Ludopédio

No jogo entre o Brasil e a Inglaterra, para muitos uma final antecipada da Copa do Mundo, o povo comemorou a valer. O barulho dos rojões era ensurdecedor. Torcedores mais exaltados gritavam no meio da rua. Bombeiros (vi na Globo) ligaram as sirenes de seus caminhões.

Tudo isso seria perfeitamente normal e esperado se a partida não tivesse começado às 3h30 da madrugada no horário de Brasília. Poucas coisas deixam uma pessoa com mais mau humor do que acordá-las no meio de sua noite de sono. Como se explica então que milhões de brasileiros tenham voluntariamente nem todos foram despertados pela barulheira renunciado a seu repouso para assistir a um jogo de futebol? (Nesse contexto, nem comento a exasperante vitória sobre a Turquia ontem. O adversário era mais fraco, e o horário do jogo, 8h30 da manhã, foi quase civilizado).

Há duas semanas, ressuscitando o bom e velho Karl Marx, afirmei nesta coluna que o futebol era um pouco o ópio do povo. Cumpre agora explicar os mecanismos pelos quais a dependência ludopédica se instala nos corpos dos viciados e se assenhora de seus espíritos. Para tanto, faço ressurgir um outro pensador já quase esquecido, Johan Huizinga (1872-1945).

Para esse historiador holandês, a idéia de jogo é central para a civilização. Em seu "Homo Ludens", de 1938, Huizinga afirma que todas as atividades humanas, incluindo filosofia, guerra, arte, leis e linguagem, podem ser vistas como o resultado de um jogo, ou, para usarmos a terminologia técnica, "sub specie ludi" (a título de brincadeira).

A escrita alfabética surgiu porque alguém resolveu brincar com sons, significados e símbolos. A filosofia, se quisermos, é um grande jogo de conceitos. Mesmo as guerras, particularmente as guerras antigas, ocorrem segundo certas regras que lembram jogos e não excluem gestos de cavalheirismo. O Direito, então, é pura encenação. Na Inglaterra advogados e juízes ainda usam perucas (por aqui só sobrou a toga), numa evidência incontestável de que o mundo das leis tem muito de teatro. (Infelizmente, o português, ao contrário de várias outras línguas da Europa Ocidental, não usa a palavra "brincar" ou "jogar" para designar o ator que representa um papel; essa coincidência é clara, por exemplo, no inglês "to play" ou no francês "jouer").

Huizinga não chega a decretar que o amor ao jogo é o traço que distingue o homem de outros animais, mas fica perto disso. O Homo ludens, o homem que brinca, não substitui o Homo sapiens (homem que sabe, que raciocina), mas se coloca ao lado e um pouco abaixo deste, mais ou menos na mesma categoria que o Homo faber (homem que trabalha) de Max Frisch.

Não sei como andavam os estudos zoológicos em 1938, mas a prudência de Huizinga foi recompensada. Hoje sabemos que mamíferos em geral e até algumas aves brincam. O lúdico parece desempenhar um papel importante no aprendizado. De todo modo, há autores que ainda sustentam ser o homem o único animal que é capaz de jogar ao longo de toda a sua vida e com o propósito claro de extrair prazer da brincadeira.

Voltando a Huizinga, o autor define jogo como "atividade ou ocupação voluntária executada dentro de certos limites fixos de tempo e espaço, de acordo com regras livremente aceitas mas absolutamente restritivas, que tenha seu fim em si mesma e que se faça acompanhar de um sentimento de tensão, alegria e da consciência de que ela difere da vida ordinária".

Tomemos então o caso do futebol, também chamado, não por acaso, de "ludopédio", que, etimologicamente, significa "jogo de pés". Trata-se, como quer a definição de Huizinga, de uma atividade voluntária e limitada espacial e temporalmente. O jogo ocorre num campo de futebol de dimensões mais ou menos fixas e dura normalmente 90 minutos. As regras são relativamente simples, embora a noção de impedimento ainda represente um desafio para as mulheres (é brincadeirinha, viu).

Os jogadores aceitam essas normas porque querem. São raros os casos em que a expulsão de um futebolista faltoso determinada pelo árbitro tenha de ser efetivada "manu militari" pela polícia. Mais até, nunca ouvi falar de jogador que tenha exigido ordem judicial para deixar o campo, embora, tecnicamente, essa seja a única forma legal de expulsá-lo do ponto de vista do Estado de Direito.

As regras do futebol são restritivas (ninguém, exceto o goleiro, pode usar as mãos, por exemplo) e trazem elas mesmas o objetivo do jogo, que é marcar um número de gols superior ao imposto pelo adversário. Na tentativa de realizar essa meta, somos (jogadores e espectadores) submetidos a sensações de "tensão" e "alegria". Acrescento, por minha conta, o sentimento de "pavor", que ocorre toda vez que o zagueiro Lúcio pretende sair driblando sozinho.

Acho que a chave para o fascínio proporcionado pelo futebol está no último trecho da definição de Huizinga, na "consciência de que [essa atividade] difere da vida ordinária". É nessa passagem que, suspeito, se estabelece a dependência neuroquímica. Enquanto o jogo dura, as regras que regem a realidade cotidiana ficam suspensas. Como a nossa realidade não anda tão primorosa assim, é sempre um prazer abandoná-la (nem que por apenas 90 minutos) em favor de uma outra, que sempre faz sentido, cujas leis conhecemos melhor e na qual já provamos mais de uma vez que somos bons.

Aqui o futebol, como qualquer jogo, se torna alienante, mas a alienação é justamente uma das coisas que buscamos com o gesto de brincar. Para Huizinga, são pelo menos três as funções do jogo: a agonística (competição), a lúdica (exuberância, ilusão) e a diagógica (passatempo, ócio). Se quisermos, todas elas se relacionam de algum modo ao conceito hegeliano-marxista de alienação.

A diferença é que Huizinga procura ver no jogo seus aspectos criadores e não os negativos. O jogo, a brincadeira podem até tornar impossível a verdadeira compreensão da Realidade (no sentido forte que lhe atribuem os grandes sistemas filosóficos), mas tiveram o mérito nada desprezível de ajudar a produzir a linguagem, as leis, a ciência, a própria filosofia, a civilização, enfim.

Não vou, evidentemente, sugerir que a civilização moderna seja uma consequência do futebol, muito embora um mundo sem o Corinthians seja necessariamente um mundo pior. Mas é interessante e faz todo o sentido pensar a capacidade do ser humano de jogar como um dos elementos constitutivos de seu "éthos".

Assim, por brincadeira, podemos afirmar que o homem se saiu melhor do que seus parentes primatas porque tinha maior capacidade de brincar: sem querer, acabou criando a civilização. Mesmo que tudo isso não baste para explicar nossa paixão pelo futebol, serve para demonstrar que a ligação dos homens com o jogo é antiga, profunda e, diria um neurobiólogo, inscrita no DNA. Pessoalmente, acho que a teoria do Homo ludens prova também que o mundo é uma piada. Nesse contexto, faz todo o sentido do mundo o Felipão escalar Lúcio, Roque Júnior e Edmílson.

Hélio Schwartsman é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

FolhaShop

Digite produto
ou marca