Pensata

Hélio Schwartsman

11/07/2002

Escrito sob as estrelas

Que o Congresso Nacional está repleto de iniciativas inoportunas, não é nenhuma novidade. Faz parte do jogo democrático. Na segunda-feira da semana passada, contudo, fazendo minha leitura matinal dos jornais, descobri que o senador Artur da Távola (PSDB-RJ) é o autor de uma proposta de regulamentação da profissão de astrólogo. Tive a curiosidade de ler o projeto. Tamanhos são os despautérios, que imediatamente propus e escrevi um editorial para a Folha rebatendo a idéia.

O editorial, intitulado "O céu como limite", não nada tinha demais. Era bem feijão-com-arroz até. Criticava em primeiro lugar o tom cartorialista da medida. Pela proposta de Da Távola, a profissão passa a ser "competência privativa do astrólogo". Todas as entidades "públicas, privadas ou mistas, cujas atividades envolvam questões do campo de conhecimento da astrologia" deverão contar com "assessoria obrigatória do astrólogo profissional".

Há já aí motivos de sobra para oposição. Pessoalmente, nada tenho contra a astrologia. Coloca-a no mesmo patamar da religião, do sexo, das drogas e da literatura: fonte legítima de prazer para os apreciadores. Acho, porém, que não é uma boa idéia nem mesmo abrir as portas para destinar preciosos recursos públicos para a astrologia em detrimento de saúde, educação e tantas outros setores que, na minha opinião, merecem prioridade.

Também não gostei da tentativa de limitar, a golpes de caneta, os que terão o direito de ler nas estrelas os destinos dos homens. Segundo o projeto de Da Távola, "o exercício da atividade de astrólogo fica assegurada preferencialmente" aos aprovados em associações de classe, aos profissionais que já atuem no mercado e aos que tenham cursado escolas de formação devidamente reconhecidas.

O que irritou os astrólogos, contudo, foi eu ter afirmado que a astrologia não é uma ciência. Mesmo sendo o editorial da Folha uma peça não assinada, eles descobriram que eu era o autor, localizaram meu endereço eletrônico e atulharam minha caixa de correspondências de mensagens, a maioria muito educadas, sustentando que a astrologia é, sim, uma ciência. Estou até hoje tentando responder a todos. Se ainda não consegui, peço a compreensão.

Confesso que a reação me surpreendeu. Não pelo volume nem pelo tom de crítica ao editorial. Sempre que a Folha se manifesta contra os interesses de um grupo mais ou menos articulado, a réplica é proporcional ao grau de organização da parte atingida. O que me causou estranheza foi o fato de os astrólogos reclamarem para sua arte o estatuto de ciência. Devo frisar que o editorial não era uma peça de propaganda contra a astromancia. Ele até lhe reconhecia valor como manifestação cultural ou literária. Aparentemente, os astrólogos querem mais.

Existem, evidentemente, inúmeras definições do que seja uma ciência. Por algumas a astrologia será uma ciência, por outras, não. Pelo que pude perceber, os astrólogos almejam por uma conceituação forte, que lhes reconheça a capacidade de fazer e acertar previsões com base no estudo das configurações do céu. Acho que estão querendo demais. Aqui, eu abraço a crítica do filósofo austríaco-britânico Karl Popper (1902-1994) às pseudociências, entre as quais incluiu a metafísica, o marxismo e a astrologia.

Para Popper, o que caracteriza uma ciência empírica é a sua "falseabilidade", isto é, a capacidade de fazer previsões tão precisas que possam ser desmentidas pelos fatos na hipótese de conterem um erro. Se um astrônomo afirma que um determinado fenômeno celeste vai ocorrer a uma dada hora, mas ele não acontece, a teoria astronômica foi falseada e precisará ser revista. Quando a hipótese não é falseada, mas corroborada pela experiência, o modelo teórico permanece incontestado. Segundo Popper, o problema com a astrologia é que ela faz predições tão vagas que, não importa qual seja o desfecho real, o astromante sempre poderá reclamar que o vaticínio se cumpriu. Num exemplo caricatural, um juízo como "Marte inspira cuidados com a saúde" é infalível. Se a pessoa objeto da predição se mantém saudável, é porque ela "observou o conselho"; caso contrário, é porque não lhe deu atenção. Sei que os defensores da astrologia vão dizer que sua arte é um pouco mais sofisticada do que isso, mas insisto que o espírito geral é este mesmo.

Podemos, é claro, rejeitar Popper. A concepção de ciência que ele defende está ultrapassada e contém um grau de positivismo que já não estamos dispostos a aceitar. Em coluna anterior ("A fé nas microondas"), eu mesmo já imprequei contra os excessos do positivismo e apontei o que considero limitações do método científico. Abandonemos então Popper por um instante e tomemos a epistemologia de Thomas Kuhn (1922-1996), que segue um modelo supostamente mais histórico.

Também Kuhn rejeita o estatuto de ciência para a astrologia. Não porque ela não seja falseável quando o paradigma de uma ciência não está em crise, pesquisadores não ficam tentando falsear as teorias que sustentam hipóteses, mas porque ela não tem o que o autor chama de tradição de resolução de problemas ("puzzle-solving tradition"). A astrologia, diferentemente da astronomia, não gera problemas do tipo quebra-cabeças que serão solucionados pelos cientistas durante o curso do que Kuhn chama de ciência normal.

Mas será que podemos rejeitar também Kuhn? É claro que poderíamos. Os astrólogos gostam de citar um outro filósofo, Paul Feyerabend (1924-1994), para o qual a adivinhação celeste seria uma ciência tão legítima quanto a física. Receio que a minha leitura seja outra. Feyerabend é o "enfant terrible" da epistemologia. Ele de fato defende a astrologia, mas apenas para sustentar o relativismo absoluto e atacar as ciências empíricas (e não há pior insulto para um astrônomo do que chamá-lo de astrólogo).

Para Feyerabend, o método é impossível. Cada discurso tem um paradigma tão único que torna impossível sua comunicação com outros paradigmas. Nenhum tipo de discurso (já fica difícil falarmos em ciência) é melhor do que o outro. A física nuclear vale tanto quanto a necromancia, a leitura dos destinos humanos nas tripas dos animais sacrificados aos deuses. (Para Feyerabend, é a exuberância e a proliferação dos mais variados sistemas que produz o progresso científico).

Se formos modificar nosso conceito de ciência até esse ponto, não me importaria em conceder à astrologia o seu tão almejado estatuto epistemológico. Mas desconfio de que não seja exatamente essa a concepção de ciência que os astrólogos defendem para a sua tradição. Creio que eles estão mais perto de Popper e do senso comum. Pretendem que a astrologia possibilite a formulação de juízos que depois serão "corroborados" pela realidade.

Mesmo desconfiando da suposta validade absoluta e universal do método científico, acho problemático advogarmos uma epistemologia que não distinga o mapa astral do forno de microondas. Nem que seja pelo sucesso de suas aplicações tecnológicas, acho sensato que reconheçamos diferenças de alcance entre a física e a astrologia.

Repito que não julgo a astrologia, assim como não reputo as religiões ou a literatura regional do oeste do Quirguistão, um fenômeno desprovido de valor cultural. Ao contrário até, a história da astrologia é rica e, em séculos passados, ela já pertenceu ao mais nobre núcleo de conhecimentos do Ocidente. Mesmo assim, me reservo o direito de considerar a regulamentação da profissão de astrólogo, assim como qualquer iniciativa por parte do Estado de normatizar manifestações culturais ou correntes de pensamento, uma tremenda de uma bobagem.

PS - Nas próximas duas semanas, estarei impossibilitado de escrever a coluna. Retomo-a no dia 1º de agosto.

Hélio Schwartsman é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

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