Pensata

Hélio Schwartsman

01/08/2002

Bagatela oceânica

Guerras são sempre estúpidas, mas o conflito que quase estourou entre Espanha e Marrocos há poucas semanas supera todos os demais no quesito insensatez.

Se você, ocupado leitor, não se deu ao trabalho de informar-se sobre a transcendental guerra da salsinha, digna de um roteiro de comédia de Hollywood, resumo-a nuns poucos parágrafos.

No dia 11 de julho, um pelotão de 12 gendarmes do rei Mohammed 6º ocupou a ilhota -situada a algumas centenas de metros da costa marroquina-, que os espanhóis chamam de Perejil (salsinha), e os magrebinos, de Leila.

Ambos, obviamente, disputam a soberania sobre esse minúsculo pedaço de terra, que ostenta um penhasco de 74 metros de altura, uma grande caverna onde caberiam 200 homens e é desabitado, exceto por algumas cabras que foram levadas por pastores marroquinos para deliciar-se com as tenras salsinhas que brotam nas encostas do rochedo.

No dia 17, a Espanha mobilizou forças especiais, fragatas e helicópteros e conseguiu retomar Perejil "manu militari". Nenhum dos seis soldados do rei Mohammed que no momento ocupavam Leila ousou opor resistência à invencível armada.

Autoridades marroquinas classificaram a movimentação militar espanhola como um "ato de guerra". A Espanha, que contava com o resoluto apoio dos 19 países que compõem a Otan, a aliança militar ocidental, a mais fabulosa máquina de guerra do planeta, insistia que apenas restabelecera o "statu quo". Trocadas algumas ameaças, hoje a disputa se encaminha para a via diplomática.

Antes de continuar, permito-me uma digressão. Depois de ler um curioso texto de 1902 do filósofo espanhol Miguel de Unamuno (1864-1936) publicado pelo jornal "El País" quase dei razão aos espanhóis. Perejil, ao contrário do que pode parecer, é importantíssima, pelo menos no plano literário.

Para começar, parece ser a ilha em que Ulisses, como relata Homero na "Odisséia", passou sete anos em enlevos amorosos com a encantadora ninfa Calipso. No texto homérico a ilhota, que ficava para os lados das colunas de Hércules (o estreito de Gibraltar, limite do mundo conhecido) tinha uma grande caverna e também dava salsinha. Só isso já bastaria para justificar a invasão a Perejil. Não custa lembrar que, em algum sentido, a literatura ocidental nasce justamente quando Ulisses rejeita a imortalidade ao lado de Calipso e opta pela humanidade.

Mas Unamuno vai além. Expondo de modo irônico a tese do erudito francês Victor Bérard, o filósofo espanhol "mostra" que foi Perejil que deu nome à Espanha. É muito simples. A ilha de Calipso pode significar "ilha do esconderijo", se aproximarmos "Calipso" do verbo grego "kalúpto", que tem o sentido de "esconder", "ocultar". Ora, o nome primitivo de Perejil, segundo Bérard, era uma tradução-decalque semítica para designar justamente "ilha do esconderijo". A palavra soava como "I-spania". Sim, é exatamente isto, a ilhota de Perejil acabou, segundo essa versão, dando nome a toda a Espanha. Aqui as tropas do rei Juan Carlos ganham legitimidade etimológica para retomar Perejil aos marroquinos.

Curiosidades e literatura à parte, o que me assustou nessa particularmente ridícula guerra da salsinha é que 75,5% dos espanhóis apoiaram a intervenção militar para a retomada de Perejil, segundo pesquisa do Centro de Investigações Sociológicas (CIS). Mesmo uma população relativamente rica e instruída como a espanhola não está imune ao vírus do nacionalismo. E aqui estamos diante do nacionalismo em estado bruto, pois não dá para afirmar que a reconquista de Perejil constitua uma causa real, algo que se aproxime do que poderíamos chamar de "guerra justa".

Se o contencioso com Marrocos tivesse evoluído para um confronto de maiores proporções, não duvido de que até as razões etimológicas teriam sido brandidas como pretexto para "justificar" a "soberania histórica" da coroa espanhola sobre Perejil.

Não ignoro, evidentemente, que houve outras questões políticas por trás do gesto marroquino de hastear sua bandeira sobre Leila. Rabat queria trazer à discussão o estatuto dos encraves espanhóis em seu território, especialmente Ceuta e Melilla. Poderia também aproveitar a crise para tentar desviar o discreto apoio que Madri tem dado à Frente Polisário de Libertação do Rio de Ouro, grupo que luta desde 1975 contra a anexação do Saara Ocidental por Marrocos.

Poderíamos ainda estender a cadeia de elos políticos e lembrar o problema dos espanhóis com os britânicos por conta de um outro rochedo, Gibraltar, ou mesmo a tão falada guerra do Ocidente com o Islã.

Por mais dignidade política que queiramos emprestar ao "affaire" Perejil-Leila, ele nunca deixará de ser uma grotesca guerra da salsinha, a despropositada mobilização de exércitos e populações por conta de um rochedo que só tem valor para cabras e, poderíamos agora acrescentar, aficionados pela "Odisséia".

É justamente aí que o caso se torna emblemático. Nem o ridículo extremo da situação foi capaz de calar as vozes do nacionalismo. Ainda que em tom de farsa, estamos aqui diante do mesmo fenômeno que leva pessoas supostamente racionais a aceitar morrer voluntariamente pela pátria, mesmo que a pátria esteja errada.

Confesso que esse fenômeno me fascina. Ele não apenas é contrário à razão como também se opõe ao instinto de autopreservação, supostamente um dos mais fortes que existe. Vem-me a mente uma passagem de Platão em que o filósofo afirma que, por trás da coragem do guerreiro, pode estar a covardia: o medo de um destino pior do que a morte. No mundo antigo, seria o caso dos homens que lutam para evitar a escravidão e/ou o estupro de suas mulheres e filhas. Modernamente, esse "destino pior do que a morte" assume formas menos ameaçadoras. Pelo menos nos países ditos civilizados, ele fica restrito à reprovação social, o medo de ser rotulado como covarde ou acusado de traidor.

Nesse campo dos conflitos, é portanto a cultura e não a natureza que impera, o que não deixa de ser um paradoxo, pois costumamos imaginar a guerra como atividade de brutos. De algum modo, precisamos transcender a bestialidade e erguer-nos num ambiente social para poder recair, pela guerra, na animalidade. Parece bem estúpido, e de fato o é.

Hélio Schwartsman é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

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