Pensata

Hélio Schwartsman

23/01/2003

A escola, o racismo e a "Ilíada"

Há na sociedade brasileira hoje o virtual consenso de que é preciso acabar com o racismo. As polêmicas vão surgir é quando se detalham um pouco mais os mecanismos para fazê-lo. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou, há cerca de 15 dias, a lei nº 10.639/03, que torna obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, sejam eles da rede oficial ou particulares.

Não há como ser contrário ao princípio que anima a lei. A educação é, a um só tempo, uma das principais instituições (aparelho ideológico de Estado, para usar um vocabulário althousseriano) a perpetuar o racismo e uma das mais valiosas ferramentas para combatê-lo. Toda e qualquer tentativa séria de construir uma sociedade mais plural passa necessariamente pela educação.

Apesar dessas considerações, acho que a lei 10.639 implica uma série de problemas. O que seria o mais óbvio deles, a ausência de uma definição mais precisa do que sejam a história e a cultura negras, foi de certo modo evitado pela deputada Esther Grossi (PT-RS), a autora da lei. O parágrafo 1º do artigo 1º do diploma estabelece os conteúdos programáticos que respondem pela história e cultura negras. São eles: história da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, além das contribuições do povo negro nas áreas social, econômica e política.

A primeira objeção que se coloca é de ordem prática. Estariam os professores prontos para abordar esses temas? A resposta é, evidentemente, negativa, principalmente no que diz respeito à rede pública, que ainda se debate com dificuldades tão elementares como ensinar as crianças a ler e escrever direito.

É preciso reconhecer, porém, que esse argumento do despreparo é limitado. Levado ao extremo, ele é imobilizante, pois não poderíamos tentar implementar nada de novo em educação sem antes resolver todos os problemas básicos, o que não ocorrerá tão cedo. Na verdade, se queremos professores habilitados a ensinar qualquer tópico novo, precisamos antes criar a demanda e aí esperar que a rede os forme. Durante um tempo, portanto, os novos conteúdos não serão ensinados ou o serão de forma mais precária.

A pergunta que eu me faço é se vale a pena mobilizar toda a estrutura de formação de professores para torná-los aptos a ensinar história africana, por exemplo. Acredito que prestaríamos melhor serviço à causa da igualdade racial se nos concentrássemos no combate ao racismo. Parece-me mais produtivo e democrático nos esforçarmos em ensinar que o racismo é errado do que tentar escrever uma história alternativa.

Longe de mim sugerir que não se possa ensinar uma história do ponto de vista dos negros ou que ela seja sem interesse, mas convém lembrar os negros não são o único grupo que sofre com o racismo no Brasil. O fenômeno da discriminação atinge todas as minorias e até algumas maiorias, como é o caso das mulheres. Ao fazer uma historiografia dos negros, estamos deixando de fazer a dos índios, dos asiáticos, dos árabes, dos judeus e de todos os outros grupos étnicos com presença no país e que poderiam legitimamente reclamar o mesmo tratamento.

E eu não acho que faça o menor sentido enterrarmos o ensino da história que muitos chamam pejorativamente de branca e masculina em favor de dezenas de histórias alternativas. Como a deputada Grossi, eu também creio que a história oficial é excessivamente eurocêntrica, quase que fechando as portas para outras visões. Mas é preciso reconhecer que somos uma sociedade de origem européia. São os valores europeus que, justa ou injustamente, se impuseram no Brasil. É claro que podemos e devemos apontar todos os crimes cometidos pelos colonizadores contra os negros e os índios, mas o fato de os portugueses terem perpetrado coisas hediondas não desqualifica automaticamente tudo o que é europeu. A escravidão nas Américas não torna a "Ilíada" um livro pior.

Não estou, com essas ponderações, afirmando que estamos condenados a perpetuar, sem nenhuma espécie de abertura, a cultura branca e européia. Acho, sem dúvida, pertinente ensaiar outras abordagens, mas não creio que isso deva ocorrer de modo idêntico e linear em todo o território nacional. O projeto original da lei nº 10.639 previa até que pelo menos 10% do conteúdo programático das disciplinas de história do Brasil e educação artística no ensino médio fosse dedicado à temática negra, dispositivo que foi oportunamente vetado pelo governo Lula.

Há, na verdade, um pequeno paradoxo na lei nº 10.639. Sua meta declarada pela deputada Grossi na justificativa do projeto é a promoção de uma sociedade "em que todos tenham direitos" e que reconheça "o direito à diferença". Só que, ao determinar o ensino de uma história negra, a golpes de caneta e ignorando todos os demais grupos étnicos ditos minoritários, ela acaba incorrendo no mesmo autoritarismo que presumivelmente pretendia combater.

Se a dialética serve para alguma coisa, ela deveria nos ensinar que, para vencer o racismo, não basta afirmar coisas positivas de negros, índios, amarelos ou roxos, o que seria uma forma, se não racista, pelo menos etnocêntrica de lidar com o problema. A boa dialética exige que o racismo não seja ignorado ou tenha apenas seu sinal invertido, mas que seja de algum modo incorporado a uma nova formulação que tratará de superá-lo ("aufheben", para usar a linguagem hegeliana). A meu ver, essa nova formulação consiste em tentar mostrar aos estudantes por que o racismo é eticamente condenável.

Também me parece importante ressaltar que existe um problema pedagógico com a nova lei. Ela modifica a LDB (Lei de Diretrizes e Bases, uma espécie de constituição da educação) concorrendo para esmaecer o que esse diploma tem de melhor, que é a ampla autonomia que confere às escolas e comunidades para fixar seus currículos.

De fato, parece bem mais prático, democrático e não-autoritário deixar a cargo de cada comunidade a definição mais detalhada dos temas que lhe interessam estudar. É perfeitamente razoável supor que uma escola do Norte do país, por exemplo, considere a história dos índios mais relevante que a dos negros e que outra, frequentada por descendentes de poloneses no Paraná, prefira reforçar os estudos sobre o Leste Europeu.

Se há algo a tornar obrigatório para todo o país e eu pessoalmente tendo a desconfiar de medidas compulsórias é o ensino do princípio de respeito à diferença, cabendo a cada comunidade detalhar os conteúdos programáticos que vai valorizar.

Leis e decretos proíbem determinadas condutas e até obrigam a certos atos, mas o fenômeno do racismo, mais do que em gestos e atitudes, está no modo de pensar de cada um. E, para o bem e para o mal, ninguém jamais encontrou uma fórmula para regular pensamentos. Isso faz com que seja mais fácil assinar uma lei para acabar com a escravidão do que baixar uma norma que de fato elimine o racismo.

Hélio Schwartsman é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

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