Pensata

Hélio Schwartsman

06/03/2003

O alfabeto divino

"A matemática é o alfabeto no qual Deus escreveu o universo". Essa bonita frase de Galileu Galilei (1564-1642) é apenas uma das várias que transformam o Criador num Grande Geômetra. A tradição, com efeito, remonta aos gregos especialmente os pitagóricos e a Platão, mas prosperou, chegando até mesmo a Einstein, para quem "o Senhor não joga dados".

A idéia de que por trás do universo reina uma ordem racional é de fato sedutora. Acho que é um sucedâneo daquele mesmo impulso que levou o primeiro homem a criar a primeira religião. Mas receio que, antes mesmo de chegar ao terceiro parágrafo desta coluna, eu já esteja me perdendo. Não pretendia escrever sobre Deus, mas, sim, sobre matemática, mais especificamente sobre o ensino da matemática.

Como mostrou a mais recente edição do caderno Sinapse, da Folha, apenas 21% dos brasileiros podem ser considerados "numericamente alfabetizados". Esse dado foi obtido na pesquisa Inaf (Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional), realizada pelo Instituto Paulo Montenegro, do Ibope, em parceria com a ONG Ação Educativa. Ele está longe de significar que 1/5 dos brasileiros sejam verdadeiros Poincarés ou Fermats, muito pelo contrário. Para ser classificado como "alfabetizado", bastava que o entrevistado fosse capaz de fazer uma regra de três ou ler uma tabela.

Ainda segundo a sondagem, 51% dos brasileiros dizem ter alguma dificuldade para fazer contas. Cerca de um terço da população entre 15 e 64 anos consegue no máximo executar tarefas simples, como anotar um número de telefone ditado por alguém, ver as horas no relógio ou verificar uma data no calendário.

A situação é grave porque alguém que não possa calcular o impacto de uma taxa de juros, acompanhar a evolução de uma campanha eleitoral ou controlar seu orçamento doméstico é inevitavelmente menos cidadão do que os capazes de fazê-lo.

Uma série de fatores contribui para tornar o ensino da matemática uma tarefa mais árdua do que o necessário. Eles vão da caricatural dificuldade da matéria que acaba se tornando uma profecia auto-realizável para os alunos até o despreparo dos professores.

Como a carreira de professor de matemática é socialmente pouco valorizada, ela acaba sendo a opção de alunos menos preparados, que apresentam menor renda familiar e menor grau de instrução dos pais. Não sou eu que está afirmando isso, mas sim dados do perfil socioeconômico dos formandos que se submeteram ao Exame Nacional de Cursos, o provão.

Em 2001, a matemática era a disciplina com maior déficit de professores efetivos na rede pública de São Paulo. Num concurso realizado pelo Estado, 19.058 candidatos se inscreveram para concorrer a 16.461 vagas. Apenas 7.000 foram aprovados. Para além do déficit de cerca de 10 mil docentes, fica uma constatação incômoda: como 70% dos candidatos a uma vaga efetiva no Estado já lecionam na rede em caráter temporário, fica patente que muitos dos professores em atividade não reúnem as condições técnicas mínimas para exercer a função. E os exames para ingresso no Estado, vale lembrar, não se notabilizam pelo rigor excessivo.

Em algum grau, a questão do ensino da matemática é um problema mundial, pois se contam às dezenas as instituições e grupos internacionais que se dedicam seriamente ao aprimoramento das propostas pedagógicas na área. Eu mesmo devo dizer que sou uma "vítima" da matemática moderna do início dos anos 70. Em vez da velha tabuada, ensinaram-me teoria dos conjuntos no primário. Era uma daquelas tentativas de tornar mais vivo e interessante o ensino da matéria.

Não me queixo do resultado, embora não ache que a substituição do 2 x 7=14 pelos "pacotinhos dentro de envelopes metidos dentro de caixas" tenha tornado a coisa muito mais atraente. Posso ter ficado meio lento para fazer contas até simples, mas normalmente entendo sem dificuldades extremas novos conceitos matemáticos que me expliquem, mesmo que eles sejam algo abstratos.

Posso estar redondamente enganado, mas atribuo à minha iniciação pela matemática moderna a capacidade de ter conseguido entender ainda que de forma limitada a solução moderna para os célebres paradoxos de Zenão.

Zenão de Eléia, como muitos devem saber, é aquele grego chato que dizia que a flecha nunca chega ao alvo, porque, para fazê-lo, teria, antes, de percorrer a metade da distância entre o arco e o alvo; antes disso, teria de percorrer a metade da metade da distância e assim por diante ao infinito.

Zenão propôs esse e outros paradoxos de mesma natureza (como aquele em que Aquiles nunca alcança a tartaruga) no século 5º a.C. Hume, Kant, Hegel e muitos outros tentaram dar respostas a esses problemas. Mas, falando em bom português, esses veneráveis filósofos apenas se enrolaram. Kant, por exemplo, acabou dizendo que a capacidade de compreender a noção de infinito estava além da razão humana. Os paradoxos levantados pelo eleata só ganham uma solução satisfatória no século 20, graças a trabalhos de vários autores de vários séculos, entre os quais se destaca Dedekind.

A coisa pode ficar um pouco abstrata, mas arrisco resumir a explicação. Na verdade, as noções de infinito, espaço e tempo utilizadas por Zenão é que são problemáticas, porque admitem espaços infinitos entre os pontos (unidades mínimas) que os compõem. Se substituirmos a reta de números inteiros do eleata pela reta de números reais da matemática moderna o bom conjunto R, ela se torna unidimensional e contínua, pois passa a ser feita de pontos sem dimensão e a flecha pode finalmente chegar ao alvo. Com os números reais, a reta fica mais densa. Desaparecem os interstícios pelos quais Zenão podia proceder a infinitas divisões entre pontos da reta de números e, por conseguinte, entre pontos no espaço e eventos no tempo.

Os gregos não aceitavam bem a idéia de que o ponto não tinha dimensão, a reta possuía apenas uma e o plano, duas. A dificuldade residia basicamente na noção_bastante natural, aliás_ de que as coisas têm materialidade, de que os próprios números são entidades. Platão não apenas lhes deu existência concreta no mundo das idéias (eles são eternos e universais) como ainda chegou a afirmar que governam o mundo. Seria um erro afirmar que os filósofos gregos não tinham capacidade de abstração, mas o fato é que, em relação aos números, eles resistiram a abandonar a noção de entidade em favor do conceito de número como posição, mais de acordo com a matemática moderna. Não é por outra razão que não desenvolveram o conceito de zero, que só chegou ao Ocidente no século 13, importado da Índia por mãos de árabes.

Depois de tantas voltas estou parecendo Aquiles atrás da tartaruga, chego ao ponto central desta coluna que é afirmar que sou favorável às novas abordagens para o ensino da matemática, mas receio que exista um "nec plus ultra", isto é, um limite, dado pelo grau de abstração, além do qual não podemos chegar. Acho difícil desenvolver formas intuitivas e naturais de ensinar conceitos mais complexos. Há na matemática um ponto a partir do qual novas abstrações só são possíveis por intermédio da linguagem formal. Daí que defendo, como propõe a AAAS (Associação Americana para o Progresso da Ciência), uma simplificação dos "curricula" de matemática.

Acredito que seria mais produtivo ensinar menos coisas aos alunos, mas ensinar melhor, fazendo com que os conceitos sejam de fato assimilados e não apenas decorados. É claro que essa equação tem um preço. Ao abrir mão de conteúdos talvez deixemos de lado tópicos importantes, como a trigonometria, um dos candidatos a corte segundo a AAAS.

O fato, contudo, é que a pesquisa Inaf, bem como os vestibulares e uma série de testes internacionais, mostram que não estamos, na prática, ensinando nem uma fração de todos os conteúdos que constam dos "curricula". É o caso, portanto, de repensá-los.

Deus já foi acusado de Grande Geômetra, mas não, que eu saiba, de Sublime Pedagogo. Se queremos instruir os jovens em matemática, a linguagem na qual Ele criou o universo, é preciso, antes, alfabetizá-los nesse alfabeto divino. E isso as nossas escolas não estão fazendo.

Hélio Schwartsman é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

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