Pensata

Hélio Schwartsman

08/03/2001

Os mortos

"De mortuis nil nisi bene". Numa tradução livre: "Não se deve falar dos mortos senão benevolamente". A máxima é atribuída a Quilão, citado como um dos Sete Sábios. O autor é hoje um ilustre desconhecido do século 6º a.C. Sua frase, contudo, ficou. Costuma ser citada em latim embora Quilão falasse grego por conta de Horácio, que a imortalizou no idioma do Lácio.

Esse intróito, algo rebuscado, serve para comentar a reação geral à morte de Covas. As exéquias, como era de esperar, foram concorridas. A TV nos bombardeou com imagens do velório, cortejo, enterro etc. A imprensa publicou os necrológios de praxe, que, como exige a tradição inaugurada pelo nosso obscuro sábio, não podiam senão falar bem do governador Mário Covas.

Até um desinibido Paulo Maluf, notório desafeto do governador, se pôs a elogiá-lo.

Evidentemente não perpetro essas duvidosas linhas para falar mal de Covas. Ele era sem sombra de dúvida um político digno e correto. Mas é claro que existem outros como ele. Como todo homem e como todo político, Mário Covas tinha também seus pecados, grandes e pequenos. Essa obviamente não é a hora mais adequada para dizer isso, mas emoções não deveriam obnubilar nossa percepção do óbvio.

O que me interessa aqui é justamente palpitar sobre a razão pela qual a morte abala tão profundamente os que ficam. Se o fenômeno se verificasse apenas em civilizações primitivas, em que a religião se exprime privilegiadamente no culto aos ancestrais, seria até fácil compreender.

Mas a reverência para com os mortos ocorre também em sociedades tecnológicas e que colocam a razão como fonte principal da tomada de decisões. Na verdade, ocorrem até em grupos supostamente ateus, como mostra a hoje incômoda múmia de Vladimir Ilitch "Lênin" Ulianov.

Há outras incongruências. Várias religiões monoteístas afirmam que há uma vida "post mortem" e que ela é melhor do que esta. Os seguidores dessas doutrinas, salvo raras exceções, não parecem porém ansiosos para morrer, como seria de esperar se as pessoas tratassem sua fé observando os princípios gerais da razão.

Podemos propor uma abordagem puramente racional da reação do homem diante da morte, mas jamais conseguiremos encará-la, ela mesma, de modo racional. Se as coisas fossem assim simples, o crente estaria sempre desejoso de morrer e o estoicismo seria a filosofia insuperável.

Já se definiu o homem como o único animal que tem consciência de sua própria morte. Há até quem afirme que todas as nossas neuroses advêm daí. É fato que o homem se preocupa com a morte desde antes de ser homem. Há indícios de que o Homo neanderthalensis já realizava rituais fúnebres (inumação) entre 120 mil e 80 mil anos atrás.

Se eu tivesse pendores pela psicobiologia, diria que existe uma reação específica à morte que está indelevelmente marcada na programação genética do homem. Como não sei bem o que isso possa significar, reafirmo o que os antropólogos estabeleceram há várias décadas: a inumação, como os tabus sexuais e a religião, é um universal humano, possivelmente o mais antigo deles.

E o surpreendente é que, mesmo com significativas mudanças na compreensão da morte e com profundas alterações sociais, não abandonamos certos padrões, certos paradigmas, como o de não falar mal dos mortos. (Numa reação-espelho, também se criam e contam muitas piadas, mas vou poupar o leitor das que ouvi).

De certa forma, a sacrossantidade pública que o recém-falecido adquire tem algo de ritual. Não é muito diferente da, digamos, antropofagia endógena.

Nos primórdios, extravasávamos nossa angústia com a morte de um próximo enterrando-a junto com o cadáver; hoje, nós a cobrimos com elogios nos jornais, no caso de o defunto ser ilustre o bastante para merecer um epitáfio na imprensa. Com o louvor público, "encomendamos" sua alma.

Tancredo, Senna, Ulisses e agora Covas. Desconfio de que o brasileiro, talvez mais do que outros povos, é dado a esse tipo de celebração. É um ritual que provavelmente guarda importante função, ou não teria sido preservado em escala mundial, ainda que em formatos variados e diferentes dos mais antigos.

Seria esperar muito que, nessas circunstâncias, tudo o que se escreveu sobre Mário Covas fosse fruto de ponderada e sóbria reflexão. Pelo que se lê, quem morreu não foi um homem, mas o Filho bigênito de Deus. Por mais que eu goste de Covas e, como todos, gosto (é também engraçado como levamos um certo tempo para substituir o tempo presente do verbo pelo imperfeito), é claro que ele não atingiu o messiado. Era apenas um homem, o que, meio paradoxalmente, torna sua honradez mais digna.

Outro paradoxo: mesmo tendo-me proposto a analisar o fenômeno das exéquias de Covas de modo puramente racional, acabei elogiando-o. Isso ao menos explica por que Quilão, por ter dito "de mortuis nil nisi bene", foi galgado à categoria de sábio.

Hélio Schwartsman é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

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