Pensata

Hélio Schwartsman

24/01/2008

Mortoboys

Para quebrar o gelo e preencher os incômodos espaços vazios que às vezes surgem em conversações, ingleses se valem proverbialmente de comentários sobre as condições climáticas ou o horário dos trens. Em São Paulo, com uma pluviometria menos surpreendente que a das ilhas britânicas e mal servida por linhas férreas, é o trânsito que faz as vezes de curinga dialógico. Como cada qual é afetado de forma diferente pelas manifestações aleatórias e multifacetadas do tráfego, todos sempre têm algo a relatar --garantia de que a interlocução não murchará. Como se trata de fenômeno complexo e multifatorial, permite que a conversação flua pelas mais diversas áreas do conhecimento e da experiência humanos.

Basta sentenciar que a única solução é investir pesadamente no transporte coletivo para imprimir algum conteúdo social ao diálogo. Os que desejam escancarar sua profissão de fé liberal aproveitam para defender o pedágio urbano. Céticos na natureza humana desembainham as cifras assassinas --são quase 40 mil mortos por ano no Brasil-- e decretam a inviabilidade, senão da espécie, pelo menos a da nacionalidade. Sejamos ou não viáveis, o trânsito se oferece aos paulistanos como uma janela para discutir sociologia, direito, economia, urbanismo e até um pouco de biologia e física (dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço ao mesmo tempo).

A amplitude do material é tamanha que também possibilita ao maieuta hábil manipular a conversação para despertar no interlocutor o estado emocional desejado. É só fazer apelo a um engarrafamento inesperado (situação por todos já vivida) para instigar-lhe a empatia, que pode chegar à indulgência se o relato servir para justificar um atraso ou outra conduta omissiva, ou à raiva, se for revelado que o congestionamento teve como causa um gesto de imprudência.

No caso específico de São Paulo, a exuberância do trânsito foi ainda reforçada pelo surgimento de uma espécie desconhecida em outras paragens: os motoboys. A um só tempo vítimas preferenciais e predadores insidiosos, estes estafetas urbanos, que morrem à macabra razão de um por dia, se converteram numa virtual unanimidade negativa. Entre condutores de veículos com mais de duas rodas, é difícil encontrar quem não os odeie. Também pudera. Muitos dos representantes da categoria circulam com fúria por espaços improváveis entre as faixas de rolamento das grandes avenidas, buzinando feito malucos e arrancando os espelhinhos laterais de motoristas incautos. Quando por acaso um dos motoboys é ferido em acidente que envolva também um carro, logo dezenas de colegas se enxameiam à sua volta para tirar satisfações com o chofer do veículo de passeio, intimidando-o mesmo que a culpa pelo sinistro caiba exclusivamente ao motoboy.

Como diligente condutor de automóvel de quatro rodas, compreendo o impulso de alguns de meus homólogos de mandar eletrificar com carga letal seus espelhinhos laterais. Em seu devaneio, o motoboy que neles relasse encontraria morte instantânea, relativamente indolor e acima de tudo justa. Mas precisamos aprender a separar sentimentos pessoais das considerações racionais que devem servir de base para a tessitura da legislação. Até motoboys merecem um julgamento justo antes de ir para a cadeira elétrica.

A turma de bom coração gosta de atribuir as agruras dos motociclistas paulistanos ao sistema. Como costumam ser remunerados pelo número de entregas realizadas, dirigem desembestadamente na tentativa de ganhar alguns cobres a mais. Disciplinar o regime de trabalho seria de fato desejável, mas acho improvável que funcione. O setor de motofrete vive na mais pura e plena informalidade --à beira até da marginalidade. E, para impedir um cidadão de circular numa via urbana com sua motocicleta carregando o que bem desejar, sejam documentos, pizzas ou qualquer outro produto não-ilegal, seria necessário revogar os direitos e garantias fundamentais, o que (espero) a sociedade não está disposta a fazer --nem mesmo se for para acabar com os motoboys.

Brincadeiras à parte, é fácil identificar o culpado por essa situação de pré-guerra civil entre motoristas e motoboys. Trata-se do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso que, há dez anos, quando da sanção do Código de Trânsito Brasileiro (CTB), contrariando o parecer de técnicos e a vontade do Congresso Nacional, vetou o artigo 56 do projeto original, que dispunha: "É proibida ao condutor de motocicletas, motonetas ou ciclomotores a passagem entre veículos de filas adjacentes ou entre a calçada e veículos de fila adjacente a ela". Não sei a que poderoso lobby FHC atendeu, provavelmente ao dos pizzaiolos, mas os resultados estão aí para quem quiser verificar: de acordo com a Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), de São Paulo, 52% dos acidentes com motos em 2006 ocorreram devido à circulação entre os carros. Morreram 380 ocupantes de motocicletas, salto de 10% em relação a 2005 e de 50% quando se consideram os dez anos anteriores. É claro que, nesse período, a frota de motocicletas da cidade também cresceu: foram 117,6%, contra um aumento de 25,5% no número de carros.

Até acho que o Congresso deve reinstituir o artigo vetado. A própria CET já estuda enquadrar os motociclistas que circulam entre carros por desrespeito a outros artigos do CTB, como não guardar distância lateral (art. 192), ultrapassagem pela direita (art. 199) e direção perigosa (art. 169). Mas duvido um pouco dos resultados. Agora que a cultura de andar por entre os automóveis já está plenamente estabelecida, revertê-la exigiria mobilizar por vários meses uma legião de fiscais e policiais que têm várias outras tarefas para realizar, algumas até mais urgentes.

É nesse contexto que o prefeito Gilberto Kassab aparece com paliativos como a proibição de motos nas vias expressas das marginais do Pinheiros e do Tietê. Não creio que vá dar certo. Por falta de capacidade de fiscalização, São Paulo já conta com cerca de 30% de seus veículos na ilegalidade, isto é, sem pagar IPVA e multas. Motos ainda mais facilmente do que carros conseguem escapar ao controle das autoridades. É só o segundo ocupante da moto pôr a mão sobre a placa traseira para torná-la imune à fiscalização. Por essas e outras já há até quem pense em vetar também a garupa.

Embora eu seja extremamente cético quanto à solução do problema, torço para que ela venha. O melhor caminho ainda me parece o da retificação das normas de trânsito seguida de um esforço de implementação. Embora a logística seja difícil, há sentido econômico em tal esforço. Segundo a CET, ocorrem por dia dez acidentes com motos, boa parte dos quais implicam procedimentos custosos como a utilização de serviços de resgate e leitos de UTI na rede pública. Isso, é claro, sem mencionar os ônus previdenciários e o custo das incalculáveis horas-trabalho perdidas nos congestionamentos provocados por acidentes.

Embora não me considere um Mangabeira Unger capaz de visões futurísticas dos aquedutos suspensos sobre a Amazônia, gostaria muito modestamente de apresentar minha sugestão para reduzir a violência no trânsito. A melhor explicação que encontrei para a transformação de pessoas normalmente gentis e pacatas em monstros fominhas quando se sentam atrás de um volante está no fato de que os veículos raramente permitem contato visual entre os condutores. Nossas mentes não estão equipadas para reconhecer monoblocos de aço e capacetes de fibra de vidro como elementos com os quais devamos interagir socialmente. Por não encontrar neles nenhum traço das expressões faciais e linguagem corporal que medeiam nossos relacionamentos ordinários, nós os vemos como bólidos de pura intencionalidade, que se colocam em nossos caminhos com o intuito único de nos atrapalhar. Como não vemos a face do motorista, não admitimos a hipótese de ele estar distraído, emocionalmente perturbado etc. Privamo-lo de sua humanidade. Não passa pela nossa cabeça que, dentro de um carro ou atrás de um capacete sem rosto esteja um sujeito cuja aspiração de dobrar à esquerda é tão legítima como a nossa. Para levar a civilidade ao trânsito, minha proposta, que ainda precisa ser submetida ao teste da realidade, é que os carros sejam equipados com microcâmaras, as quais projetariam a imagem do motorista em telões instalados sobre o capô. Munidos desse aparato, veículos deixariam de ser objetos anônimos com os quais é mais difícil interagir em padrões civilizados para converter-se numa versão, ainda que desengonçada, de ser humano.

Se a experiência fracassar, pelo menos poderemos usar os telões para confundir os condutores inimigos exibindo DVDs pornográficos e outras manobras diversionistas.

Hélio Schwartsman é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

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