Pensata

Hélio Schwartsman

14/02/2008

Liberdades viscerais

Na imprensa brasileira, preocupada que está com a tapioca do ministro, o caso passou meio despercebido, mas ele reúne muitos dos ingredientes de uma grande história: dinheiro, injustiças, exploração da miséria, mais dinheiro e, igualmente importante, desafia nosso senso moral. Só o que falta é um pouco de sexo, mas nem tudo é perfeito... Falo da prisão, na semana passada, do médico Amit Kumar num luxuoso resort de selva no Nepal. Kumar, também conhecido como Dr. Horror, é acusado de comandar uma rede ilegal de transplantes renais na Índia. A crer nas acusações da polícia, a organização capitaneada pelo médico realizou, ao longo da última década, cinco ou seis centenas de transplantes, por vezes retirando órgãos de pessoas vivas sem o seu consentimento. Na maioria das ocasiões, entretanto, o doador aceitava ceder o rim em troca de dinheiro.

Kumar, é claro, nega as acusações. Diz que jamais enganou ninguém. Talvez sim, talvez não, mas a lei indiana veta, desde 1994, a venda de órgãos para transplante. A exemplo do que ocorre na maioria dos países ocidentais, doações intervivos são permitidas apenas entre parentes ou em situações muito específicas.

Nos últimos anos, a Índia vem se tornando um importante destino do chamado turismo médico. Acorrem para o país centenas de pessoas, em especial cidadãos da Malásia e de Estados do golfo Pérsico, que precisam de um transplante de rim e podem pagar por isso. Em meio à proverbial miséria indiana, não é difícil recrutar doadores. Em alguns vilarejos e favelas onde a rede operava de modo mais entranhado, praticamente todas as famílias possuem um integrante que vendeu um rim para pagar dívidas. Pesquisa realizada por uma ONG de apoio a doadores mostra que, um ano depois do procedimento, a maioria das pessoas que cederam o órgão seguia endividada e se encontrava em pior estado de saúde.

Pelas últimas cotações do mercado negro, um transplante de rim na Índia sai por US$ 25 mil (o doador costuma receber entre US$ 1.250 e US$ 2.500). Na China, o mesmo procedimento (com o órgão em geral retirado de presos executados) fica em US$ 70 mil e, nos EUA, US$ 85 mil (para quem consegue achar um órgão em consonância com as rigorosas leis que regulam a doação).

Apesar de todas essas histórias de horrores, defendo a legalização da venda de órgãos. Meu argumento é essencialmente filosófico: o corpo é meu e faço com ele o que quero. Colocando a coisa de modo um pouco menos infantil: a autonomia do indivíduo, que é o fundamento lógico do Estado liberal-democrático, deve prevalecer sobre considerações do tipo "oh, coitadinhos dos pobres e ignorantes".

Desde que ninguém seja coagido a fazer o que não deseja, o único juiz legítimo do que é melhor para um dado indivíduo é o próprio indivíduo, seja ele rico, pobre, instruído ou néscio.

Não pretendo, com esse argumento, diminuir a complexidade do problema dos transplantes, mas acho importante desmistificar alguns pontos dessa questão. Em primeiro lugar, é preciso deixar claro que a licença para a comercialização não implica a tão odiada "privatização". Se o único modo de obter um rim ou outro órgão fosse recorrer ao "mercado", estaríamos, aí sim, criando uma situação absolutamente indesejável, em que apenas os mais ricos teriam acesso a esse gênero de terapia. Ocorre que admitir doações intervivos mediante pagamento não implica pôr um fim ao sistema que hoje vige na maioria dos países ocidentais, pelo qual os órgãos provenientes de cadáveres (a maioria deles) são distribuídos através de uma lista pública, à qual todos os pacientes têm, pelo menos em teoria, as mesmas chances de acesso.

Há aí, admito, um risco. Alguns especialistas, baseados em experiências com doação de sangue, suspeitam que, se se permitir que dinheiro entre na jogada, isto é, que órgãos e tecidos se tornem uma "commodity", haveria uma redução nas chamadas doações altruístas. No limite, famílias, para evitar qualquer participação na idéia de mercenarismo, poderiam recusar a retirada dos órgãos de seus parentes em morte encefálica. A conferir. Mas o que esse argumento faz é recomendar cautela com eventuais mudanças, que deveriam antes passar por um período de testes em países ou regiões específicas, não que se adote o imobilismo como norma.

Ninguém vai me convencer de que, para o paciente que está amarrado a uma máquina de diálise, é preferível receber um rim fornecido altruisticamente a um obtido mediante paga. De algum modo, porém, a moral do Ocidente classificou como perversa a venda de órgãos. Não sou um iconoclasta visceral. Estou disposto a respeitar noções morais vigentes quando elas são socialmente úteis ou mesmo neutras. Começo a implicar com elas quando se transformam num empecilho ao "bem comum", isto é, o maior quinhão de felicidade possível para o maior número de pessoas. E me parece claro que tabus imemoriais que resistem a toda racionalização não devem impedir a realização de um negócio almejado pelas duas partes envolvidas. Se toda doação deve envolver gestos desprendidos, por que não obrigar também as equipes médicas que realizam os transplantes a agir altruisticamente, abrindo mão de seus honorários?

Outra objeção respeitável diz respeito à qualidade dos órgãos oferecidos. Para conseguir mais rapidamente seu dinheiro, o doador interessado tenderia a mentir sobre sua saúde, escondendo de quem faz a triagem doenças ou hábitos que poderiam comprometer a operação. Pode ser, mas acredito que, fora do contexto de um mercado negro, esse risco não é tão importante. Transplantes renais são, em sua maioria, cirurgias eletivas, nas quais os médicos dispõem de tempo para testar os doadores para as principais moléstias que contra-indicariam o transplante, como hepatites, Aids. Na verdade, estão obrigados a fazê-lo, pois várias dessas doenças se apresentam também em formas assintomáticas.

A principal crítica à comercialização de órgãos tem, contudo, caráter sociológico e não médico. Afirma-se que uma pessoa com dificuldades econômicas se veria compelida a vender uma parte de si mesma para resolver seu problema, no que configuraria uma espécie de extorsão orgânica. "Non sequitur". Essa é uma bela de uma falácia. Muita gente passa por constrangimentos financeiros, mas nem por isso sai por aí roubando, se prostituindo ou vendendo pedaços do corpo no mercado negro (que já existe). Ainda que muitos ficassem tentados a trocar um rim por alguns milhares de reais, não vejo por que tirar-lhes o direito de decidir por si mesmos, desde que devidamente esclarecidos das implicações da escolha para sua saúde.

É claro que a decisão que cada um tomar não necessariamente será a melhor. A natureza humana, embora caracterizada pela razão, é pródiga em substituir a reflexão ponderada, que deveria pautar nossas grandes escolhas, pela ditadura dos impulsos e caprichos. Também é fato que a necessidade --o "hic et nunc", o aqui e agora-- costuma ser desproporcionalmente supervalorizado por nosso córtex pré-frontal. A questão é que, se admitimos como legítima a tutela do indivíduo pelo poder público, estamos justificando qualquer Estado autoritário que alegue defender os "verdadeiros" interesses da pessoa ou comunidade. Essa é a lógica das teocracias e das experiências socialistas, não a minha. Se há algo realmente indisponível na existência humana, não é a vida nem as partes de nosso corpo, mas nossa liberdade de agir (ou reagir, tanto faz) diante de circunstâncias que não controlamos. É o que Sartre quis dizer quando definiu o homem como um ser "condenado" à liberdade.

Hélio Schwartsman é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

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