Pensata

Hélio Schwartsman

05/03/2008

O prazer de perdoar

Como se temia, o ministro Carlos Alberto Menezes Direito pediu vista na ação de inconstitucionalidade contra pesquisas com células-tronco embrionárias humanas, frustrando as expectativas de uma decisão rápida para essa importante matéria. Difícil acreditar que a atitude não tenha objetivos protelatórios. Direito, afinal, define-se como um católico fervoroso, o que o torna necessariamente um adversário desse tipo de investigação. E, na prática, retardar a decisão significa evitar pesquisas, pois são poucos os cientistas que investem em experimentos que poderão ser considerados ilegais amanhã.

Entrando no mérito do problema, beira o "nonsense" a posição da Igreja Católica e de outros grupos religiosos contra as pesquisas médicas com células-tronco no Brasil. O que o artigo 5º da Lei de Biossegurança (nº 11.105) autoriza é a utilização de embriões remanescentes de tratamentos para fertilidade. Estamos, portanto, falando de mórulas que tenham sido consideradas inviáveis ou que estejam congeladas há mais de três anos --o que as torna más candidatas para iniciar uma gravidez. Não foram implantadas num útero e são mais do que remotas as chances de que venham a sê-lo. Seu destino seria a destruição pura e simples ou permanecer indefinidamente congeladas num freezer.

Sei que a Igreja Católica sempre foi contra os bebês de proveta. Só que isso não muda o fato de que existem alguns milhares de embriões armazenados em clínicas de fertilidade. Qual a proposta do Vaticano para eles? Obrigar as mães a introduzi-los em seus úteros? Oferecer as freiras para servir de barrigas de aluguel e permitir que eles possam nascer?

Não sou um especialista em logística social, mas parece-me uma tremenda de uma asneira deixar que esse material biológico já disponível e sem destinação evidente pereça no próximo apagão elétrico. É muito mais razoável dar-lhe um fim nobre, como a utilização em pesquisas que poderão um dia, ainda que distante, salvar vidas.

Não estou, com essas considerações pragmáticas, afirmando que não existe uma questão de princípio que pode e deve ser discutida. Se há um debate a que eu não me furto são aqueles que envolvem proposições filosóficas. O problema aqui é que, diante da situação concreta, a posição religiosa adquire tons que transitam entre o surreal e o obtuso.

Não é muito diferente da questão do aborto. Sei que Roma acha que o procedimento deve ser considerado crime em todas as circunstâncias. Mas, independentemente da ordem das razões, o que a igreja pretende que se faça com as mulheres que tentam --e continuarão tentando, não importa o que diga a lei-- expulsar embriões de seus úteros? Colocá-las na cadeia? No Brasil, estima-se que sejam 1,5 milhão de abortos por ano. Lembrando que são relativamente raros os casos de mulheres que fazem dois procedimentos no mesmo ano, precisaríamos de algo como 1,2 milhão de novas vagas/ano em penitenciárias femininas. Isso dá a bagatela de 3.333 vagas/dia, sem botar na conta médicos, parteiras e comadres que se acumpliciam com as criminosas e, pela lei, também deveriam ir para o xilindró. Será que a Santa Sé está disposta a leiloar alguns de seus Michelangelos e Fra Angélicos para nos ajudar a construir tantas cadeias? Minha suspeita é que desejam manter essas práticas na ilegalidade apenas pelo prazer de, depois, perdoar o pecador.

Admitamos, porém, pelo bem do debate, o nefelibatismo vaticano e deixemos de lado as questões práticas. O argumento católico é o de que a vida tem início na concepção e deve desde então ser protegida, seja ela viável ou não, esteja dentro ou fora de um útero.

Primeiro reparo. É bobagem afirmar que a vida começa com a concepção. Tanto o óvulo como o espermatozóide já eram vivos antes de se unirem. O que dá para dizer é que a fusão dos gametas marca a criação da identidade genética única do que poderá tornar-se um ser humano, se as condições ambientais ajudarem. Temos, portanto, um ser humano em potência, para utilizar a distinção aristotélica, autor tão caro à igreja. E não faz muito sentido embaralhar potencialidades com atualidades; afinal, no longo prazo somos todos cadáveres.

Embora os "amici curiae" evitem dizê-lo nos autos, o ponto central, que torna coerente a posição do Vaticano, é um dogma "de fide": o homem é composto de corpo e alma. E, para a igreja, esta é instilada no novo ser no momento da concepção. Só que ninguém jamais demonstrou que existe alma e muito menos que ela se instala no embrião quando o espermatozóide fertiliza o óvulo. O dissenso não opõe apenas religiosos a vis ateus. Uma das mais importantes autoridades da igreja, santo Tomás de Aquino, afirmou, acompanhando Aristóteles, que a alma de garotos só chegava ao embrião no 40º dia. Já a de garotas, talvez porque fossem mais lentas para arrumar-se, só no 48º dia.

Recuemos, porém, mais um pouco na ordem das razões. Será que a noção de alma pára em pé? Estima-se que 2/3 a 3/4 dos óvulos fecundados jamais se fixem no útero, resultando em "abortos" espontâneos (as aspas vão porque, pelas definições mais aceitas não dá nem para falar em aborto antes da nidação). Isso, é claro, quando a fecundação ocorre naturalmente no corpo da mulher. Quando ela se dá dentro de um tubo de ensaio, as chances caem bastante. Os médicos estimulam os ovários da mulher a fim de retirar-lhe o maior número possível de óvulos. Freqüentemente obtêm algumas dezenas, que são em seguida fertilizados, transformando-se zigotos e daí mórulas. Por determinação do Conselho Federal de Medicina, implantam no máximo quatro delas. As demais são postas no freezer.

O que quero dizer é que a "vida em potência", no mais das vezes, torna-se, não "vida em ato", mas "aborto em ato". Se a alma é soprada por Deus no momento da concepção, qual é o sentido desse verdadeiro holocausto anímico? Para cada alma humana que "vinga" duas ou três são sacrificadas antes mesmo de vir à luz. Tamanho "desperdício" seria menos insensato se a Igreja Católica abraçasse, como as religiões antigas, a doutrina da metempsicose (transmigração das almas). A alma não teve sucesso nesta tentativa, paciência, volte mais tarde. Mas, como o catolicismo rejeita a tal da reencarnação, cada aborto resulta numa alma irremediavelmente perdida. É bem verdade que essa aparente incongruência não é um problema para o verdadeiro fiel, que jamais questiona os atos de Deus. Mesmo que nos pareçam insensatos, fazem sentido no plano superior.

Só que essa não é a única dificuldade que a introdução da alma nos apresenta. Para começar, a própria concepção não é exatamente um instante, mas um intervalo que varia de 24 a 48 horas. Esse é o tempo que transcorre entre a penetração do espermatozóide no óvulo e a fusão genética dos gametas. Será que a alma leva todo esse tempo para ser soprada no novo ser? Pior, se assumimos todas as conseqüências dessa noção, mulheres que usam DIU ou tomam a pílula do dia seguinte deveriam ser processadas como assassinas em série, pois esses métodos contraceptivos impedem que o concepto --já com alma-- se implante no útero. (A Igreja Católica de fato condena toda forma "não-natural" de prevenção da gravidez, mas a maioria dos protestantes não vai tão longe).

É, entretanto, o fenômeno da gemelaridade que revela todos os limites e contradições da idéia de alma. Gêmeos monozigóticos (idênticos) se formam entre um e 14 dias depois da fertilização, quando o embrião sofre um desenvolvimento anormal dando lugar a dois ou mais indivíduos com o mesmo material genético. A alma, é claro, já estava lá. Cabem, assim, algumas perguntas. Ela também se divide, ou outras almas surgem para animar os demais irmãos? De onde elas vêm? Quem fica com a "original"? E, se gêmeos partilham a mesma alma, como fica o livre-arbítrio? Se um irmão peca, leva o outro --talvez bonzinho-- ao inferno? Ou a alma boa prevalece sobre a má, carregando para o paraíso uma ovelha negra?

Cada um é livre para acreditar ou não em alma, ciência, tratamentos para fertilidade ou uma mistura disso tudo em proporções variáveis. Mas o Estado democrático deve procurar a proporcionar a maior felicidade possível para o maior número de cidadãos, sempre respeitando os direitos de todos. Nessa busca invariavelmente conflituosa, fatos provados devem ter primazia sobre opiniões. Dogmas e crenças de alguns não podem converter-se em obstáculos na busca pelo bem comum.

Hélio Schwartsman é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

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