Pensata

Hélio Schwartsman

13/03/2008

Clima de guerra

Felizmente, tudo terminou bem, sem que um único tiro fosse disparado. Mesmo assim fica algo de inafastavelmente ridículo no comportamento dos líderes latino-americanos que protagonizaram a mais grave crise diplomática a afetar a região nos últimos anos, depois que militares colombianos invadiram território equatoriano para dar cabo de um acampamento das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). Na operação, foi morto Raúl Reyes, o número dois da organização guerrilheira.

Ao longo de toda a semana passada, os presidentes da Colômbia e do Equador, este secundado pelos dirigentes da Venezuela e da Nicarágua, trocaram impropérios irrevogáveis e prometeram lavar em sangue a honra do país ultrajado. Era tudo fogo de palha. Na sexta-feira já estavam trocando tapinhas nas costas. Por pouco não saíram abraços e juras de amor eterno.

Longe de mim insinuar que a guerra era preferível. Mas, se as palavras duras que lançaram uns contra os outros não eram para valer, por que as proferiram?

A primeira coisa que me veio à mente foi o "Ensaio sobre a Origem das Línguas", divertido texto de Jean-Jacques Rousseau em que o autor atribui às condições atmosféricas determinadas características dos idiomas. Assim, "nos climas meridionais, onde a natureza é pródiga, as necessidades nascem das paixões; nas regiões frias, onde ela é avara, as paixões nascem das necessidades, e as línguas, tristes filhas da necessidade, ressentem-se de sua áspera origem". Enquanto, no sul das "paixões voluptuosas" a primeira palavra foi "amai-me", no norte ela foi "ajudai-me".

Não duvido de que tem faltado amor às vidas de Chávez, Uribe, Correa e Ortega, mas meu propósito aqui não é o de psicanalisar esses presidentes, mas apenas investigar um pouco melhor as supostas relações entre língua, ambiente e pensamento humano. O bom Jean-Jacques não foi o único a sugeri-la.

Várias eminências pardas do pensamento filosófico ocidental seguiram a mesma direção. Nietzsche, por exemplo, em "Vontade de Potência", escreveu: "Temos de parar de pensar se nos recusarmos a fazê-lo na prisão da linguagem". Heidegger vai na mesma linha: "O homem age como se ele fosse o formador e o mestre da linguagem, quando, na verdade, a linguagem é a mestra do homem". E também Barthes, como sempre exagerando: "O homem não existe antes da linguagem, seja como espécie, seja como indivíduo". Até o geralmente mais preciso Wittgenstein diz algo parecido: "Os limites de minha linguagem são os limites de meu mundo".

Bem, todos eles estão errados. Quem volta a demonstrá-lo com elegância é Seteven Pinker, em seu mais recente livro, "The Stuff of Thought" (a matéria do pensamento). As frases destes grandes filósofos são versões mais ou menos vigorosas daquilo que em lingüística se conhece por Hipótese Sapir-Whorf (SWH), assim batizada em referência ao lingüista Edward Sapir (1884-1939) e seu aluno antropólogo Benjamin Lee Whorf (1897-1941).

O que a SWH basicamente diz é que existe uma relação sistemática entre as categorias gramaticais da língua que uma pessoa fala e o modo como ela compreende o mundo e nele atua. É claro que, em algum grau, língua e pensamento se relacionam, ou os idiomas seriam inúteis, pois não poderiam nem comunicar idéias. Mas o que a SWH sustenta, pelo menos em suas formulações mais radicais, é que ela determina o pensamento.

Especialmente Whorf, parece ter ido longe demais em seu "insight". Ele chegou a afirmar que, enquanto os idiomas europeus tendem a analisar a realidade como objetos no espaço: o presente e o futuro são "lugares" ligados pelo tempo; outras línguas, em especial as da América, se focam no "processo" temporal. Assim, sugeriu Whorf, um falante de hopi teria mais facilidade do que um ocidental para apreender a teoria da relatividade de Einstein, na qual espaço e tempo formam um "continuum". Não duvido das aptidões de nenhum falante de nenhuma língua para a física teórica, mas, até onde sei, a popularidade de Einstein não é melhor que a do general Custer nas áreas hopi do Arizona.

O mais famoso dos casos de Whorf, porém, é o dos esquimós. Ele e vários outros autores sustentaram que esses habitantes do Ártico contariam com várias dezenas (às vezes centenas e até milhares, dependendo da versão) de palavras para descrever a neve e que isso teria impactos profundos sobre sua forma de relacionar-se com o mundo.

Em primeiro lugar, não é muito exato afirmar que os esquimós tenham tantas palavras mais do que outros povos para descrever a neve. É que os idiomas inuit (esquimós) são aglutinantes, isto é, permitem a formação de novas palavras através da adição de prefixos, sufixos e outros elementos. Desse modo, quando um falante de inuinnaqtun menciona a "patuqutaujuq", ele não está falando de uma realidade inapreensível para o brasileiro, mas tão-somente da "neve congelada e cintilante". O conceito é exatamente o mesmo, embora precisemos de dois adjetivos e um substantivo para expressá-lo. No mais, ainda que os inuit tenham mesmo umas poucas palavras a mais para descrever a neve, isso não chega a ser surpreendente, visto que estão rodeados dela por todos os lados. Daí não se segue que "enxerguem" tonalidades de branco invisíveis ao homem ocidental nem que sejam capazes de construir toda uma metafísica com base nas sutis diferença entre os flocos. O fenômeno é, na verdade, trivial. Onde uma pessoa normal vê "tinta", um pintor enxerga um "óleo", uma "aquarela" ou "tinta acrílica". Da mesma forma, onde vemos neve, o olhar treinado do esquimó já define o tipo de precipitação. Mas neve segue sendo neve em qualquer lugar do mundo. Diferenciá-la com mais ou menos precisão não muda a "psique" de ninguém, assim como o meteorologista ocidental não tem o cérebro diferente do nordestino brasileiro que só vê neve quando abre o freezer.

O próprio português já foi "vítima" de uma lenda urbana de inspiração whorfiana. Alguém um dia proferiu a grande bobagem, freqüentemente repetida, de que o termo "saudade" não teria tradução em nenhuma outra língua do mundo. É claro que não é assim. Seguem alguns equivalentes: os russos têm "tosca"; alemães, "Sehnsucht"; árabes, "hanin"; armênios, "garod"; sérvios e croatas, "jal"; letões, "ilgas"; japoneses, "natsukashi"; macedônios, "nedôstatok"; húngaros, "sóvárgás". Os amantes do classicismo podem acrescentar a essa lista o "desiderium" latino e o "póthos" dos antigos gregos.

Ora, se até os cães demonstram sentir saudades de seus donos quando deles ficam separados, seria de um etnocentrismo despropositado acreditar que esse sentimento é próprio apenas aos que falam português.

Mas, voltando à questão da linguagem, evidências empíricas fornecidas por pesquisas no campo da neurociência indicam que o cérebro teria um idioma próprio, o mentalês. É nele que armazenamos informações em neurônios e as processamos e depois as "retraduzimos" para a língua natural por nós falada. Se há um filósofo que estava quase certo é Kant, ao propor que nosso cérebro pensa sobre intuições de espaço e tempo e através de categorias como quantidade (unidade, pluralidade), qualidade (realidade, negação) e relação (causalidade, comunidade).

É uma boa notícia para poetas e visionários. Não apenas a tradução é possível como também, pelo menos num sentido profundo, todos os homens compartilham um idioma comum e não é impossível que venham a entender-se. Se até falastrões incorrigíveis como Chávez e Uribe souberam recuar e ceder aos apelos da razão, ouso acreditar que um dia também o Oriente Médio experimentará a paz. Bem, acho que agora eu exagerei. O Oriente Médio, não, mas quem sabe a África.

Hélio Schwartsman é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

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