Pensata

Hélio Schwartsman

27/03/2008

A lei do mais fraco

Longe de mim justificar a ignominiosa ocupação chinesa do Tibete, mas, sempre que uma questão desponta como virtual unanimidade planetária --caso da independência tibetana--, é lícito supor que a história esteja mal contada. Não estou com essas poucas palavras dizendo que não existam opressores e oprimidos, certo e errado. Apenas afirmo que as relações internacionais são terreno tão movediço e repleto de nuanças e sutilezas hermenêuticas que, quando uma situação qualquer parece clara demais, o mais provável é que alguma versão tenha ficado de fora do relato.

É inegável que os chineses oprimem o povo tibetano e cometem toda sorte de violação aos direitos humanos. Também está fora de questão que o governo central de Pequim vem, ao longo das últimas décadas e por diversos meios, erodindo a base da cultura tradicional tibetana. Mas daí não se segue que os chineses sejam bandidos desalmados que apenas tiranizam os heróicos e pacíficos tibetanos, sempre a um pequeno passo da santidade.

É verdade que Tenzin Gyatso, o 14º dalai-lama, é uma figura simpática. Está sempre sorrindo e vem, há quase cinco décadas, liderando uma luta de independência nacional. Fê-lo sem recorrer ao terrorismo ou a outras formas de violência muito exacerbada. Defende com o que parece ser autêntica convicção o equilíbrio ambiental do planeta. E isso já bem antes de Al Gore. Ganhou o Prêmio Nobel da Paz (1989) e a medalha de ouro do Congresso dos EUA (2007), além da cidadania honorária canadense (2006).

O que não se menciona tanto é Tenzin Gyatso chegou a ser o monarca de uma teocracia absolutista que, até 1951, ainda mantinha o regime de servidão. Segundo o tibetólogo Melvyn Goldstein, com exceção de cerca de 300 famílias nobres, todos os tibetanos eram servos ("mi ser") ligados a terras pertencentes a aristocratas ou monastérios budistas.

Tampouco se alardeia que o 14º dalai-lama, que assumiu seu posto em 1950, tentou compor com os comunistas para preservar-se no poder nem que, uma vez destituído, após a revolta anticomunista de 1959, passou a receber mesada da CIA para levar adiante a partir do exílio a luta pela independência.

Também não é verdade que a China trata o Tibete como uma colônia, limitando-se a extrair suas riquezas sem dar a mínima para a população local. O PIB per capita dos tibetanos que habitam a República Autônoma do Tibete (RAT) cresceu 30 vezes quando comparado a 1950, enquanto a população mais do que dobrou, passando de 1,2 milhão para 3 milhões hoje. De acordo com o Birô de Estatísticas Chinês, a média dos salários pagos na RAT é a segunda do país, perdendo apenas para a região de Xangai, mas superando a de Pequim.

A China também criou toda a rede de ensino secular da Província (antes só havia educação religiosa), e instalou todos os 25 centros de pesquisa científica. Sob o domínio de Pequim, a mortalidade infantil caiu de 430 por mil nascidos vivos em 1950 para 35,3 por mil em 2000, sempre segundo dados oficiais. É uma melhora substancial, mesmo considerando que as taxas tibetanas são ainda bem maiores (mais ou menos o triplo) do que as verificadas para outras etnias. No mesmo período, a expectativa de vida saltou de 35,5 anos para 67.

Insisto em que não estou, com essas numeralha, querendo justificar barbaridades perpetradas pelos chineses. Nenhuma pujança econômica autoriza nem meia violação a direito, mas não parece muito exato afirmar que os tibetanos são coletivamente tratados como não-cidadãos. A realidade é mais matizada do que querem tanto o governo central chinês como a comunidade tibetana no exílio.

E, por falar em matizes, é difícil até afirmar com todas as letras que o Tibete já foi uma nação independente. Poupo o leitor dos meandros do debate, que pode adquirir caráter bastante técnico. De forma resumida, porém, podemos afirmar que as histórias do Tibete e da China estão fortemente imbricadas uma à outra. Os tibetanos chegaram a constituir um império, mas isso ocorreu entre os séculos 7º e 11. Do século 18 para cá, o Tibete esteve invariavelmente sob jugo chinês, ainda que gozando de períodos de maior autonomia. Foi num deles, entre 1914 e 1950, quando a China e as potências coloniais estavam mergulhadas em seus próprios e graves problemas (1ª Guerra Mundial, 2ª Guerra Mundial e Revolução Chinesa), que a província chegou a sentir o gostinho da independência. Mas, assim que Mao Tsetung, conseguiu estabilizar-se no poder, despachou seus soldados para reassumir o controle do platô. Pelo menos no mundo da diplomacia, o "statu quo" não é contestado. Nem a Índia, que serve de sede para o governo tibetano no exílio, reconhece o Tibete como país independente. O próprio dalai-lama já renunciou a esse pretensão, numa entrevista concedida em 2005.

Desconfio de que os chineses se obstinam tanto em recusar qualquer tipo de autonomia "de facto" por temor do precedente. Afinal, além da RAT e de três outras Províncias com expressivas populações tibetanas (Sichuan, Qinghai e Gansu), existem importantes minorias uigur, mongol e hui, cada qual com suas próprias Províncias. No total, 10% do 1,3 bilhão de chineses pertencem a um grupo étnico minoritário. E, mais importante, Pequim já foi escaldada pelo caso da Mongólia, que era, até o início do século 20, parte integrante da China, mas, depois de um período de turbulências, acabou declarando independência e a consolidando com apoio da então Rússia soviética. Por conta dessa rivalidade, a China e a URSS quase entraram em guerra.

Também a Índia, enquanto estava sob a batuta dos britânicos, aproveitou-se de confusões político-nacionalistas para "morder" um pedaço do Tibete, hoje parte do Estado de Arunachal Pradesh.

Mesmo a atual onda de protestos serve para desmistificar um pouco a idéia de que os pacíficos budistas se especializaram em levar safanões da polícia e do exército chineses. As manifestações descambaram para a violência depois que tibetanos saíram às ruas de Lhasa queimando lojas de chineses da etnia han (a predominante na China) e os perseguindo.

Por conta do bloqueio de informações imposto pelas autoridades chinesas é difícil saber o que está de fato ocorrendo por ali, mas, até o momento, tudo indica que os chineses vêm sendo relativamente contidos na repressão. Não por espírito humanitário ou respeito a direitos e prerrogativas, mas simplesmente porque temem que uma ação antimotim mais enfática possa comprometer os Jogos Olímpicos de Pequim, que terão lugar em meados do ano. Filotibetanos mais exaltados já falam em boicote à competição.

Se as coisas são menos mocinhos contra bandidos do que podem parecer à primeira vista, de onde então vem a torcida midiática pelo dalai-lama? De vários lugares. Como já indiquei, a China de fato é um poder tirânico que abusa dos tibetanos. Mas não só dos tibetanos. Faz o mesmo com membros de todas as outras etnias, sem poupar os han. Nenhuma surpresa aí. Afinal, estamos falando da maior ditadura do planeta.

No mais parece bastante razoável que os tibetanos, que compõem uma cultura distinta da chinesa, devem ter direito, senão a um país, pelo menos a maior autonomia administrativa, que lhes permita preservar sua identidade.

Só isso, entretanto, parece pouco. Se estivéssemos apenas diante de uma questão de respeito a direitos humanos ou de uma discussão sobre autonomia, acho difícil que o dalai-lama conseguisse mobilizar tantas simpatias. Desconfio de que opera aqui também a própria noção de justiça, um dos cinco núcleos de sentimentos morais a que já me referi em coluna

http://www1.folha.uol.com.br/folha/pensata/helioschwartsman/ult510u374269.shtml

anterior. Apoiamos a causa tibetana porque ela é "justa". Pelo menos no plano instintivo, não nos damos ao trabalho de definir o que é justiça. Servimo-nos de aproximações. Vale até identificar o fraco a bom e o forte a ruim. Quantos de nós já não nos pegamos torcendo pela seleção de Camarões contra a poderosa Alemanha? Basicamente, temos uma vontade quase irrefreável de "equilibrar o jogo". Não é preciso quebrar muito a cabeça para vislumbrar a utilidade dessa característica. No passado evolutivo, cada vez que ajudávamos o fraco a enfrentar um forte livravamo-nos de um rival, ou pelo menos contribuíamos para enfraquecê-lo.

Em tempos modernos, contudo, precisamos de algo mais do que impulsos morais para justificar o apoio a causas como a autonomia tibetana. De minha parte, apóio-a, mas sem entusiasmo. Os chineses já cumpriram sua missão civilizatória ao quebrar o sistema teocrático e de servidão. A menos que equiparemos os tibetanos aos grupamentos ianomâmis remotos ou outras nações indígenas tão primitivas que é melhor mantê-las longe do contato com outras culturas, é forçoso reconhecer que tal ruptura era desejável. (Teria sido melhor que ocorresse sem tanta violência, mas isso são águas passadas).

Só que, realizada essa etapa, tudo o que os chineses têm oferecido aos tibetanos é muita cacetada e algum desenvolvimento. Uma autonomia real poderia preservar o desenvolvimento, eliminando ou pelo menos reduzindo o grau de cacetada. É possível encontrar uma fórmula que não fira os brios chineses nem sirva de precedente para revoltas nacionalistas.

Propaganda à parte, são raras as circunstâncias em que a história chancela interpretações muito maniqueístas. A lógica de mocinhos contra bandidos é boa para versões hollywoodianas, mas, quando aplicada à realidade, costuma apenas converter-nos em ignorantes históricos.

Hélio Schwartsman é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

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