Pensata

Hélio Schwartsman

28/05/2009

Fertilizando a indignação

A pedidos, comento a sucessão de escândalos políticos que ocorreram enquanto estive fora. Para dar um pouco mais de temperatura jornalística à coisa (já faz um mês desde que a farra das passagens aéreas veio à tona), tomo como ponto de partida a renúncia do presidente da Câmara dos Comuns do Parlamento britânico, Michael Martin, anunciada na semana passada.

Martin é o primeiro presidente da Casa que se vê compelido a deixar o cargo desde 1695. A pressão vem por conta de suas tentativas de esconder da opinião pública os gastos de verbas extrassalariais e auxílios-moradias de seus pares.

Difícil imaginar um contraste mais acentuado. Enquanto a crise ali custou a cabeça do presidente do Legislativo, por aqui a Câmara já começa meio que à sorrelfa a desfazer as poucas medidas supostamente moralizadoras que havia adotado na esteira do escândalo aeroportuário. Na semana passada, a Mesa voltou atrás e liberou as viagens internacionais de deputados que haviam sido proibidas.

Para compreender o porquê da diferença precisamos antes analisar as semelhanças. Esbocei um artigo nesta linha que foi publicado na versão impressa da Folha no último dia 20, mas, como ali não dispunha do generoso espaço proporcionado pelas placas de silício ligadas em rede, mal consegui resvalar nas principais questões. Embora sejam as diferenças --em especial no que tange às consequências-- que chamem a atenção, as semelhanças não são menos surpreendentes. O problema, acredito, está na natureza humana, pois são sempre os mesmos elementos que geram indignação.

Os casos mais bizarros revelados pelo "Daily Telegraph" incluem pedidos de ressarcimento por gastos que vão desde esterco para jardim até móveis de luxo. Paralelos com a tapioca do ministro Orlando Silva e o faustoso apartamento do ex-reitor da UnB Timothy Mulholland se impõem automaticamente.

A figura icônica da crise britânica, entretanto, é o "member of Parliament" (MP) conservador Douglas Hogg (duas vezes ministro de Estado), que pediu ressarcimento de pouco mais de 2.000 libras esterlinas pela limpeza do fosso que circunda sua casa de campo. Aqui, as referências nacionais são o deputado do castelo, Edmar Moreira, e, por que não?, as cascatas da Casa da Dinda, do ex-presidente Fernando Collor de Mello. Hogg anunciou que não voltará a disputar um novo mandato. Edmar poderá ser cassado. Collor, registre-se, voltou ao Legislativo e é hoje senador por Alagoas.

Fôssemos um pouco menos sanguíneos, classificaríamos a maioria dessas malversações como irrelevâncias, pecadilhos no máximo. Os valores envolvidos, embora nem sempre sejam desprezíveis, mal se comparam aos de grandes obras públicas que parlamentares loteiam por suas bases eleitorais sem causar nenhum furor público. Tampouco se equiparam com os montantes envolvidos em decisões de subir juros ou socorrer bancos, que gostamos de ver como "técnicas" e fazem indiscutivelmente parte das atribuições de políticos. Talvez eu não seja um eleitor típico, mas confesso que a tapioca do ministro e quejandos não me comovem. Há um indisfarçável fundo moralista na torrente de críticas às chamadas mordomias.

Observe-se, "en passant", que esse é um dos poucos problemas fáceis de resolver a golpes de caneta. Basta pagar um salário relativamente alto a parlamentares (imagino algo em torno de 80 mil ou 100 mil mensais) e cortar todos auxílios e verbas extraordinárias. Eles teriam apenas direito a seus vencimentos e, talvez, um cafezinho nas dependências do Congresso.

Voltando às similaridades, políticos dos dois lados do Atlântico (e do Pacífico, do Índico etc.) se comportam da mesma forma também quando são apanhados com a boca na botija. Flagrados convertendo dinheiro público em benesse pessoal, invariavelmente repetem não ter cometido nenhum crime. Se a lei não impõe limites a ressarcimento de gastos, cota de passagens aéreas etc., seu uso está autorizado. É verdade. Só que esse discurso, perfeitamente legítimo para cidadãos particulares, está vedado a políticos.

Para o que segue, uso as interessantes ideias de Dan Ariely, professor de economia comportamental do MIT (Massachusetts Institute of Technology), expostas no livro "Predictably Irrational" (previsivelmente irracional). A psicologia social distingue entre os relacionamentos sociais e aqueles ditados por regras de mercado. Enquanto os primeiros são regidos por valores como lealdade, confiança e amizade, os últimos têm como marca os preceitos legais e as letras miúdas dos contratos.

Algumas empresas norte-americanas, seguindo novas estratégias de marketing, até tentaram embaralhar as estações. Lançaram-se em campanhas publicitárias onde afirmavam tratar seus clientes como se fossem "da família". Foi um desastre. Elas até que conseguiram atrair legiões de novos fregueses. O problema é que, quando cobravam uma multa por atraso no pagamento ou aplicavam qualquer outra regra contratual pouco simpática, despertavam a ira do consumidor, que, não se vendo mais como um membro da família, punha-se com toda a paixão a falar mal da companhia para todos os seus conhecidos. E esse tipo de boca-a-boca pode demolir as mais sólidas reputações.

O que aconteceu aqui? A súbita mudança de registro, do social para o contratual, foi percebida pelo cliente como uma traição. Pais não cobram juros de filhos nem lhes aplicam multas de mora. Uma empresa não pode apelar a conceitos como lealdade e confiança na hora de atrair consumidores e rapidamente esquecê-los quando chega o momento de apresentar a fatura. Na feliz imagem de Ariely (não resisto aqui a repetir a piada), isso é o equivalente de tentar pagar a sogra pelo almoço que ela ofereceu no Dia das Mães: escândalo familiar.

O mesmo vale para políticos. Eles não se elegem propondo uma relação de troca comercial. Pelo contrário, juram de forma mais ou menos convincente que vão trabalhar para representar nossos interesses. Dizem que são pessoas dignas de nossa confiança e ainda prometem acabar com a sem-vergonhice que corre solta em Brasília ou qualquer outra capital. Evidentemente, não consideramos que a compra de esterco para uso do parlamentar seja a tradução mais exata de nossos anseios, daí a indignação.

É por isso que escândalos comezinhos, de algum modo relacionados ao dia a dia das pessoas, tendem a provocar mais furor público que complicados esquemas de desvio de verbas, mesmo que os valores destes últimos sejam astronomicamente superiores aos dos primeiros. O dinheiro na cueca do parlamentar governista causou mais dano à imagem do Planalto do que o golpe contra as instituições republicanas embutido no pagamento de mesadas a deputados do mensalão.

Resta agora tentar entender por que escândalos cuja genealogia é mais ou menos a mesma têm consequências tão diferentes quando ocorrem em terras britânicas ou brasileiras. Aqui existem vários níveis de explicação. É claro que os quase 800 anos de tradição parlamentar do Reino Unido têm algo a ver com isso. Desconfio que o sistema distrital britânico, pelo qual os eleitores sabem exatamente quem é o parlamentar que representa a região em que vivem, também ajuda a canalizar corretamente a indignação. Mesmo que o agora mal-afamado Hogg desejasse concorrer e obtivesse legenda, teria ainda de convencer seus vizinhos de que é o melhor candidato.

Para seguir no plano da psicologia social, entretanto, recorro à hipótese da âncora moral. Nós, brasileiros, não apresentamos maior liberalidade para com a ladroagem porque a leniência está inscrita em nosso sangue ou porque o sol tropical nos frita os miolos, cegando-nos para malversações. É claro que, de algum modo, nossa cultura é mais tolerante para com essas coisas, mas desconfio de que o seja apenas porque tem sido. Trocando em miúdos, existe um forte componente inercial, que poderia deixar de existir se nos empenhássemos um bocadinho mais em punir quem tenha sido apanhado em flagrante.

Acho que o melhor exemplo de como funciona a âncora moral foi dado por Hannah Arendt em seu "Eichmann em Jerusalém". Ali ela conta como as populações da Dinamarca e, em menor grau, da Bulgária, se recusaram a participar da perseguição aos judeus. Eles simplesmente sabotavam o sistema de classificação racial. Era impossível distinguir judeus do restante da população. As medidas costumeiramente usadas para compelir as polícias locais a colaborar com os nazistas não funcionavam. Assim, Berlim decidiu mandar sua própria gente, a "Wehrmacht", ou seja, soldados alemães que viviam já havia alguns anos sob a doutrina hitlerista. E foi aí que veio a grande surpresa. Após uma temporada em Copenhague, os militares alemães não apenas passavam a seguir o padrão moral dinamarquês, como perseveravam nesse paradigma mesmo depois de transferidos para outros postos. Numa palavra, voltavam "estragados". Pelo menos temporariamente, não serviam mais para pôr em movimento as engrenagens dos campos de morte nazistas.

Não estou, evidentemente, sugerindo que basta pôr três ou quatro políticos na cadeia para resolver todos os nossos problemas. Ao que tudo indica, porém, o grau de tolerância de um povo para com as estrepolias de seus políticos é em alguma medida determinado por essa âncora moral, que tem mais a ver com nossos hábitos e atitudes do que com caprichos cegos do destino.

Hélio Schwartsman é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

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