Pensata

Hélio Schwartsman

11/06/2009

Amor e dor

"Papai, se os passageiros [do voo AF 447] estão todos mortos, por que estão tirando os corpos do mar?" A pergunta foi feita por meu filho David, de sete anos, ao bater o olho numa das manchetes do jornal. Como eu não sabia a resposta, embrenhei-me em frenética pesquisa. As fontes ordinárias (enciclopédias, google scholar etc.) mal abordavam a questão. Decidi, então, lançar mão de um recurso extremo: fui à Amazon e, em meu Kindle, adquiri e baixei o livro "The Nature of Grief" (a natureza do luto), de John Archer, professor de psicologia da Universidade de Lancashire. Bem, vocês já podem adivinhar qual foi meu programa no fim de semana...

A pergunta de David é boa porque revela a pouca racionalidade por trás de alguns aspectos da operação de busca. Todos os nossos conhecimentos de física e medicina nos asseguram, para além de qualquer dúvida razoável, que nenhum dos ocupantes do Airbus pode ter sobrevivido à queda da aeronave. Eles estão irremediavelmente mortos. Não precisamos de cadáveres para prová-lo e, espero, nem para expedir os certificados legais necessários. Ainda assim, sempre que tragédias desse tipo acontecem, dedicamos enorme parte de nossas energias e recursos à localização, resgate e identificação dos corpos.

É verdade que o estado dos cadáveres, ao lado de partes da fuselagem, é um dos elementos a ser analisado na investigação do acidente, que tem como meta a prevenção de novos desastres --uma atitude definitivamente racional. Mas o zelo para com a recuperação dos corpos é um fenômeno que se verifica mesmo em situações em que as causas da tragédia já são conhecidas e nada há a investigar, como o 11 de Setembro.

Essa preocupação com os restos mortais pode assumir contornos surrealistas. Na última troca de "prisioneiros" entre Israel e a milícia libanesa Hizbullah, em julho do ano passado, o Estado judeu libertou cinco membros do grupo xiita e devolveu os cadáveres de 199 combatentes libaneses e palestinos como contrapartida pelo retorno dos corpos de dois soldados. Não há teoria dos jogos que justifique a racionalidade desses números. A única explicação reside no enorme peso que o Exército israelense dispensa aos restos mortais de seus homens.

E não são apenas os israelenses. É a humanidade como um todo. Não se trata de mero acaso que a Ilíada, a peça fundadora da literatura ocidental, possa ser descrita como uma história de lutos: o ciclotímico herói grego Aquiles, para vingar-se da morte de seu amigo (para alguns amante) Pátroclo, derrota em combate o troiano Heitor e lhe desfigura o corpo; tomado pelo horror diante dessa atitude, Príamo, rei de Tróia e pai de Heitor, encontra coma ajuda do deus Hermes uma forma de encontrar-se com Aquiles e, juntos, eles choram suas respectivas perdas. O épico termina na celebração de jogos fúnebres em honra a Heitor.

Homero não é um caso isolado. O luto é um tema constante na obra de Shakespeare (Hamlet, Romeu e Julieta), Dostoiévski (Irmãos Karamázov) e milhares de outros autores de diversos calibres.

Não há dúvida, portanto, de que se trata de um sentimento forte. Nem ao menos pestanejamos antes de enviar para buscas no meio do Atlântico seis belonaves da Marinha do Brasil e 12 aviões. Os franceses mandaram para a área duas embarcações e dois aeroplanos militares. Um submarino nuclear já deve ter chegado ao local. Os norte-americanos também estão ajudando.

É o caso, portanto, de perguntar de onde vem tal sentimento. É mais ou menos isso a que se propõe Archer em seu "The Nature of Grief", uma ampla revisão sobre o tema, com abordagens psicológicas, etnográficas, etológicas e evolucionistas.

Embora outros animais, particularmente aves e mamíferos sociais, também demonstrem pesar quando algum parente morre, parece haver uma diferença fundamental entre o luto humano e o de diferentes espécies. Até onde sabemos, nossos vizinhos cladísticos não têm lá muita consciência da morte como algo definitivo e irrevogável. Neles, a angústia provocada pelo óbito não é muito diversa daquela engendrada por uma separação temporária. O luto animal seria como o de crianças até a faixa dos sete a nove anos, para as quais a morte ainda é um estado reversível, como pintada nos desenhos animados.

Essa consciência da situação especial da morte parece ter surgido tarde no desenvolvimento do Homo sapiens. Enquanto a inumação (o tratamento especial dado aos despojos mortais de parentes) é um universal humano, nada parecido jamais foi observado entre primatas. O máximo que nossos primos peludos fazem é seguir cuidando do cadáver por algumas horas, dias no máximo, até abandoná-lo em algum canto da floresta. Tal diferença permite datar a prática do sepultamento (sugestiva de um luto mais sofisticado) em algum momento posterior à marca de 5 milhões de anos atrás, quando nos separamos dos chimpanzés, nossos parentes mais próximos.

Qual seria a utilidade das emoções ligadas ao luto? Afinal, se ela evoluiu conosco, deve haver alguma razão para isso. Alguns autores de fato apostam numa presumida utilidade do luto. Não há muita dúvida de que ele pode ajudar a solidificar os laços entre os membros da espécie. Essa, entretanto, parece uma explicação improvável. A seleção natural dificilmente atua no nível da espécie. Ela normalmente o faz na esfera dos genes e dos indivíduos (na maioria das situações, esses dois níveis coincidem).

Assim, se o luto é um fenômeno que prejudica o indivíduo --e ele o faz, na forma de depressão que resulta em apatia, desatenção e baixa imunológica, entre outras condições indesejáveis--, por mais útil que ele possa ser para a espécie, não teria sido preservado ao longo de sucessivas gerações. Ao contrário, indivíduos mais propensos a exacerbar esse sentimento teriam maiores chances de morrer sem passar os genes do pesar para seus descendentes.

Soam mais verossímeis, portanto, as explicações que colocam o luto como um sentimento mal adaptado, uma espécie de dano colateral. Mais interessante ainda, ele seria o efeito indesejável do amor --este sim uma emoção "útil" para genes, indivíduos e espécies. Sofremos o pesar com a morte porque amamos. É a certeza de que a angústia da separação é permanente que nos leva às raias do desespero.

Outras espécies, como gralhas e gansos, põem-se a chamar pelo companheiro(a) quando ele(a) morre (quem o assegura é o grande cientista Konrad Lorenz, fundador da etologia). Não sabem que a morte é para sempre. E, de toda maneira, sair gritando é um comportamento útil nas muitas situações em que o animal não morreu, mas apenas se afastou por um motivo qualquer do amado(a). Algo semelhante a essa herança biológica, somada à consciência da mortalidade, é que produz o nosso luto --além, suspeito, de outros efeitos colaterais como a superstição e a religião.

Isto posto, resta-nos agora tentar entender por que damos tanta importância à recuperação do cadáver. Receio que aqui não possamos muito mais do que especular. Estudos empíricos mostram que mortes violentas e inesperadas, em que o corpo é desfigurado ou em que não é encontrado, ou que pareçam especialmente difíceis de "explicar" tendem a produzir lutos mais difíceis. Ao que parece, essa era uma situação mais ou menos comum em nosso passado evolutivo, em especial para representantes do sexo masculino, que saíam para caçar e frequentemente não retornavam. Nestes casos, encontrar o corpo era senha necessária para certificar-se da morte e seguir com a vida, contraindo novo matrimônio ou seja lá o que se fazia naqueles tempos. A quase certeza pode ser mais torturante que a certeza, especialmente quando parte de nós (e a parte mais forte, a dos sentimentos) se recusa a acreditar na perda --por menos razoável que seja essa possibilidade.

Não é uma conclusão brilhante, mas pelo menos me permite rejeitar a mais cruel hipótese levantada pelo David: "Já sei, é para os corpos não apodrecerem e envenenarem os peixes".

Hélio Schwartsman é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

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