Pensata

Hélio Schwartsman

06/08/2009

Desconfie dos números

Não me convence o número de 70.142 mortes por gripe sazonal em 2008 divulgado pelo Ministério da Saúde. É claro que a epidemiologia não é uma ciência muito exata e que, dependendo do método utilizado, obtêm-se resultados bastante díspares. No mais, não há nada de trivial em calcular a mortalidade associada à gripe, pois ela raramente consta dos atestados de óbito, que costumam apontar causas mais próximas como pneumonia, parada cardiorrespiratória etc.

É fácil, porém, constatar que os 70 mil óbitos não estão em linha com as cifras mais comumente empregadas. A OMS (Organização Mundial da Saúde), por exemplo, estima que a influenza comum provoque entre 250 mil e 500 mil mortes anuais em todo o planeta. Ora, se o Brasil, sozinho, contabiliza 70 mil, ou bem o país apresenta uma letalidade incrivelmente maior do que a média mundial ou a nossa população teria de corresponder a algo entre 14% e 28% do total de habitantes da terra. Como nenhuma dessa hipóteses parece verossímil (somos menos de 3%), é melhor desconfiar dos números.

Nossa cifra também não bate com a dos EUA. Lá, os CDCs (vigilância epidemiológica) calculam que a gripe comum esteja associada a 36 mil mortes por ano durante a década de 90. Vale lembrar que os EUA têm um sistema de monitoramento viral bem mais sofisticado que o nosso, além de uma população 50% maior que a brasileira e com uma proporção mais robusta de idosos --os quais respondem por 90% dos óbitos da gripe sazonal. Custa crer, portanto, que o Brasil apresente quase o dobro das baixas contadas pelos americanos. Melhor desconfiar dos números.

Foi o que eu fiz. Descobri que as 70.142 correspondem ao total de óbitos de 2008 elencados nas categorias J00; J10-J12; J18; J20-J22; J40-42; e J44 do CID-10 (Classificação Internacional de Doenças, 10ª revisão). Estamos falando de patologias como influenza, todos os tipos de pneumonia, bronquites e doenças pulmonares obstrutivas como o enfisema.

Temos aí um problema. Evidentemente, nem toda morte por pneumonia pode ser atribuída à influenza. Há mil maneiras de acabar com os pulmões infeccionados sem passar por uma gripe. Elas incluem outros vírus (em especial o vírus sincicial), uma miríade de bactérias e até causas mecânicas como a aspiração de líquidos. O mesmo vale para outras doenças respiratórias.

Mesmo quando a gripe pode ter contribuído decisivamente para o óbito, fica uma questão ontológica: o cara fuma durante 50 anos, cultiva seu enfisema e aí morre após uma gripe. O culpado é o cigarro ou o vírus?

A discussão filosófica é interessante, mas não é meu ponto central aqui. A própria ideia de contabilizar as mortes por gripe é maximalista. O objetivo é incluir todos os óbitos para os quais a influenza de algum modo tenha concorrido, a fim de que as pessoas se deem conta de que a gripe é uma doença potencialmente grave e que mata um bom número todos os anos. Na polêmica vírus X cigarro, ficamos com os dois.

Para os americanos, apenas 9,8% das mortes cujo atestado de óbito marca influenza ou pneumonia podem de fato ser atribuídas à gripe.

Outra dificuldade diz respeito às mortes por causas cardiovasculares. Embora boa parte dos óbitos associados à influenza se materialize na forma de pneumonia e outras doenças respiratórias, a gripe também costuma desencadear complicações cardíacas em pessoas com predisposição. Assim, no atacado, os 70 mil do Ministério da Saúde estariam superestimados por contabilizar todas as mortes respiratórias e subestimados por não contemplar as razões do coração.

Para os americanos, 3,1% do total de mortes por causas respiratórias e cardíacas estão associados à gripe.

Isso nos leva ao fulcro do problema: como se calculam essas mortes? Tradicionalmente o que os países desenvolvidos fazem é comparar os óbitos por pneumonia e influenza verificados durante a estação gripal e compará-los com o número de mortes durante os meses em que o vírus da influenza quase não circula. O excesso de óbitos no inverno é atribuído à gripe. Esse método, porém, não pode ser replicado em países tropicais como o Brasil. Ele até funcionaria para os Estados do Sul e Sudeste, nos quais se podem identificar temporadas de gripe, mas não vale para o Norte e Nordeste, onde o vírus perambula de modo mais ou menos uniforme ao longo de todo o ano.

A propósito, há um interessante trabalho de Wladimir Alonso e outros publicado no "American Journal of Epidemiology" (v. 165, no 12, de março de 2007) em que eles mostram que a influenza sazonal no Brasil se transmite num padrão surpreendente de ondas que viajam do norte para o sul, isto é, das regiões menos densamente povoadas para as mais --o contrário do que ocorre nos países desenvolvidos.

Ao longo da última década, nações do norte, não sem alguma controvérsia, foram sofisticando suas ferramentas estatísticas para calcular com mais precisão as mortes atribuíveis à influenza. Num artigo seminal de 2003 publicado no JAMA, cientistas dos CDCs liderados por William Thompson desenvolveram um modelo estatístico que combina o excesso de mortalidade por causas respiratórias e cardíacas com dados da vigilância epidemiológica sobre os vírus em circulação. É esse o método que resultou na cifra de 36 mil óbitos ao ano. Ele também permitiu calcular as mortes atribuíveis ao vírus sincicial humano (um patógeno da família do sarampo que provoca uma infecção das vias respiratórias indistinguível do resfriado comum), que chegaram a 11 mil anuais (a grande maioria crianças pequenas).

Outros estudos realizados principalmente em Hong Kong sugerem que essas metodologias mais sofisticadas poderiam ser empregadas em países de clima tropical. Talvez seja incompetência minha, mas não fui capaz de achar nada parecido para o Brasil.

Embora eu tenha com alguma insistência pedido ao Ministério da Saúde uma justificativa para os 70 mil bem como a bibliografia que apoia essas estatísticas, tudo o que obtive foi a seguinte nota um pouco mal-humorada, que não chega a responder às minhas indagações: "Não há nada estranho no número de 70 mil mortos por influenza mais causas associadas (pneumonias e bronquite). Este número não é fantasioso: ele é colhido com base em informações que constam dos atestados de óbito e é utilizado largamente em publicações internacionais e nacionais. É possível extrair os óbitos que tiveram como causa morte apenas influenza? Sim. Mas qualquer epidemiologista sabe que a influenza que se agrava e evolui para óbito traz, na grande maioria dos casos, outras complicações, e as principais são as pneumonias e as bronquites".

É verdade que esse número bruto (cujo cômputo é relativamente fácil e não envolve nenhuma modelagem) se presta a certas aplicações, como estimar a efetividade da vacinação de idosos. Receio, entretanto, que ele não represente aquilo que as pessoas têm em mente quando se evoca o conceito de mortes provocadas pela gripe.

PS - Anteontem à noite, em declaração que o ministro da saúde há de considerar patética, a OMS informou calcular que a nova gripe A (H1N1) atingirá 2 bilhões de terráqueos até o fim da pandemia. A porta-voz da organização, Aphaluck Bhatiasevi, após lembrar que essas estimativas são necessariamente grosseiras, afirmou que a taxa de ataque clínico esperada fica em algum ponto entre 15% e 45%, com ponto médio em 30%. Aplicada ao Brasil, essa cifra projeta um total de 60 milhões de gripados.

Hélio Schwartsman é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

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