Pensata

Hélio Schwartsman

27/08/2009

Paraísos artificiais

da Folha Online

Desconfio profundamente dessas iniciativas para descriminar o uso da maconha, como agora defende o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Não, ainda não me tornei um conservador empedernido, daqueles que gostam de fritar estupradores na cadeira elétrica e têm urticária só de ouvir falar em tolerância para com o usuário de drogas.

Problema desse gênero de proposta é que ela apenas resolve a situação de uma certa classe média urbana, que gosta de fumar um baseado de vez em quando sem ser incomodada pela polícia, mas mantém mais ou menos inalterado o "statu quo" da relação entre Estado e drogas --o que realmente precisa mudar.

Trocando em miúdos, a ideia de tirar a Cannabis da lista de substâncias proibidas, embora inegavelmente simpática e quase realista (não consigo imaginar nenhum Legislativo do mundo hoje indo além disso), carece de uma racionalidade mais abrangente. Se quisermos prosseguir numa linha liberal porém lógica, precisamos não descriminar, mas sim legalizar todas as drogas, não só a maconha. E, para ser consequentes, deveríamos também relaxar os controles burocráticos que atualmente recaem sobre produtos legais mas monitorados, como anfetaminas e narcóticos opioides.

É mais ou menos o que eu defendo. Comecemos, porém, pelo começo. A linha proibicionista, que tem sido a dominante no mundo desde a década de 10 do século passado, tem um único argumento de peso a seu favor: ela evita que um número maior de pessoas se exponha a drogas que provocam dependência, frequentemente com impactos bastante negativos para a saúde do indivíduo.

Alguns números ilustram bem a situação. No Brasil, pesquisa realizada em 2005 pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid), órgão ligado à Unifesp, mostrou que 75% da população entre 12 e 65 anos já havia feito uso de álcool ao menos uma vez na vida, com a proporção dos que podem ser considerados alcoólatras chegando a 12,3%. Estamos falando de um exército de 5,8 milhões de pessoas.

Em 2008, o Undoc, a agência da ONU encarregada de combate às drogas e ao crime, estimou que os usuários de todas as drogas ilícitas no mundo não passavam de 5% da população entre 15 e 64 anos, e a parcela dos que podem ser considerados dependentes fica abaixo do 0,6%. No Brasil, devemos estar ainda um pouquinho abaixo dessa média mundial.

É difícil acreditar que pelo menos parte da brutal diferença entre as legiões de alcoólatras e o modesto destacamento de dependentes de drogas ilícitas não se deva ao fato de bebidas serem liberadas, socialmente aceitas e maconha, cocaína etc., não.

Se os 5% de usuários de drogas ilícitas começarem a se aproximar dos 75% de bebedores, nossos serviços de saúde podem preparar-se para o pior, que se materializará na forma de emergências psiquiátricas, intoxicações exógenas e um acréscimo no número de acidentes relacionados a abuso de estupefacientes.

Já os defensores da legalização, entre os quais me incluo, observam que o mundo está longe de ser um lugar perfeito. Drogas existem e tendem a ter efeitos devastadores sobre a vida e a saúde de muitas pessoas; não obstante, substâncias psicoativas acompanham a humanidade desde os seus primórdios e nada indica que deixarão de fazê-lo.

Está em nosso poder definir até certo ponto com qual tipo de problemas queremos lidar, mas não solucioná-los. Minha dúvida é se as escolhas implícitas na linha proibicionista refletem decisões conscientes ou se são apenas o produto da inércia resultante de opções feitas por nossos avós, quase um século atrás. Convenhamos que o balanço da guerra às drogas não sugere a existência de um general extremamente competente sentado à mesa do Estado-Maior. Gastamos algumas centenas de bilhões de dólares por ano na repressão direta e indireta ao narcotráfico para assegurar, na outra ponta, a estabilidade do consumo de produtos ilícitos. Outras contas apontam ligeira redução ou pequeno aumento da população de usuários.

Desistir de reprimir o tráfico levaria a um aumento do consumo? É provável. Qual o custo em dólares e em anos de vida perdidos desse possível crescimento? A única resposta honesta é: "não sabemos". Muitos, entretanto, apostam que seria inferior ao que hoje gastamos com resultados entre pífios e modestos.

Outro argumento utilizado pelos defensores da legalização é o de que ela ajudaria a reduzir a violência e a corrupção produzidas pelos traficantes. Tendo a concordar, mas o efeito é bem mais sutil do que muitos sugerem. Na verdade, eu até esperaria, num primeiro momento, uma alta nos crimes mais violentos.

O enorme poder econômico dos barões da droga é um resultado direto da proibição. É ela que faz com que o preço de suas mercadorias seja cotado a ouro quando os custos de produção se contam na casa dos centavos. Eles exploram aquilo que os economistas chamam de "imposto da ilegalidade" --o prêmio pelo risco de comercializar o que é proibido. E isso no contexto de um negócio extremamente fácil: em que outra atividade criminosa a suposta vítima não apenas procura ela própria o bandido como ainda faz fila para ser servida?

Evidentemente, se os traficantes forem privados desse imposto da ilegalidade e tiverem suas margens de lucro drasticamente reduzidas, teriam muito menos poder para armar exércitos do crime, corromper autoridades e até financiar o terrorismo, como dizia George W. Bush.

Só que esse é um movimento de longo prazo. Ninguém deve esperar que, com a legalização, os integrantes do PCC e de outras quadrilhas metam ternos e se convertam em respeitáveis homens de negócios. É bem mais verossímil imaginá-los cometendo outros delitos, com os quais a vítima não concorde, como sequestros e roubos.

Aqui também é preciso atentar para o fato de que as soluções tucanas (desculpem, não resisti) não adiantam muito. Descriminar apenas não basta, é preciso legalizar de fato --eu, pessoalmente, até criaria a Narcobrás. Ou os usuários passam a adquirir suas drogas em bares, farmácias e supermercados, ou estaremos apenas reforçando o poder dos traficantes, fornecendo-lhe clientes que já nem precisam mais temer a polícia.

Pelo menos para mim, o argumento definitivo, que me faz sobrepujar todas as dúvidas e receios, é o dos limites para a ação do Estado. Por maiores que sejam as preocupações de ordem sanitária que uma eventual legalização de todas as drogas enseja, existem esferas que são vedadas à interferência do poder público. Destacam-se entre elas os corpos e as mentes das pessoas. Cada indivíduo é soberano para decidir o que faz consigo próprio. A única possibilidade de o Estado legislar com legitimidade nessa matéria é para impedir que dessas escolhas pessoais advenham males a terceiros. Ou seja, beber até cair pode; dirigir bêbado, não. Tragar uma plantação de tabaco é legítimo; dar uma baforada onde existam não fumantes, não. Inexiste motivo racional para essa lista parar no álcool e no tabaco. Em princípio, ela deveria abranger cada fármaco já no mercado ou por ser criado. A ciência médica, no que sirva para o bem ou para o mal, é patrimônio da humanidade, não feudo de médicos e farmacêuticos.

Não sei se o Brasil e mesmo os países desenvolvidos estão prontos para uma tal mudança de paradigma. Mas, se vamos defender novidades no front das drogas, que pelo menos tenhamos a coragem de apresentar pacotes que parem em pé e sejam logicamente sólidos.

Hélio Schwartsman é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

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