Pensata

Hélio Schwartsman

10/09/2009

Lolitas

Comento hoje o caso do cidadão italiano que foi preso em Fortaleza na terça-feira retrasada depois que um casal de turistas de Brasília o denunciou à polícia por beijar a boca da própria filha de oito anos e fazer-lhe carícias.

Infelizmente, eu não estava nas lúbricas praias cearenses na semana passada, de modo que não vi o que aconteceu. Em teoria é, sim, possível que o súdito de Silvio Berlusconi, traindo seus deveres de pai, tenha abusado sexualmente da filha. Considero, entretanto, essa uma possibilidade remota.

A orla marítima de Fortaleza em plena luz do dia e diante dos olhos de todos não é o melhor cenário para um estupro paterno. Soa-me bem mais verossímil a explicação dada pela mãe brasileira da garota, segundo a qual, na Itália, é relativamente comum pais e filhos beijarem-se na boca.

Essa não seria a primeira vez em que gente intrometida projeta em terceiros suas próprias fantasias sexuais, causando grandes males. Pela nova lei de estupro, a 12.015/09, o italiano, que já teve habeas corpus negado pelo TJ do Ceará, está sujeito a uma pena que vai de 8 a 15 anos de reclusão. Mesmo que ele não seja condenado, como não acho que será, as férias da família já se transformaram num pesadelo, e pai e filha sairão inexoravelmente traumatizados desse triste episódio.

Não escrevo, porém, esta coluna para falar mal de um casal de idosos desastradamente entediado, mas sim para lançar algumas dúvidas sobre o que se convencionou chamar de moral sexual.

Como bem observou Jean-Claude Guillebaud em seu "A Tirania do Prazer", nossa época vive uma verdadeira histeria da pedofilia. Para Guillebaud, o recrudescimento de uma moral sexualmente mais repressora desponta como reação até certo ponto esperada ao discurso irrazoavelmente libertário dos anos 60.

Depois de "O prazer sem limites"; "É proibido proibir"; "Quanto mais faço amor, mais tenho vontade de fazer a revolução" e outras palavras de ordem do mesmo calibre, depois de Wilhelm Reich e seu Cristo que liberta pelo sexo, era natural que as vozes antes caladas da "maioria moral" e dos "valores familiares" ressurgissem. Isso, ao lado do discurso de proteção à infância, resultou na presente era "pedofilofobia", da qual nosso italiano parece ser uma vítima.

Não é a única. Para ilustrar seu ponto, o autor reuniu algumas estatísticas judiciais francesas: de 1984 a 1993 --o livro é dos anos 90--, o número de condenações por estupro (sobretudo o de menores) havia aumentado 82%; já os atentados ao pudor cometidos por pessoas em posição de autoridade triplicaram; estupros dentro da própria família subiram 70%.

Parece bastante improvável que, no espaço de apenas uma década, a França (e poderíamos tranquilamente escrever o Ocidente aqui, pois a situação é mais ou menos a mesma em diversos países) tenha se tornado uma sociedade de pedófilos incestuosos. Uma explicação mais verossímil é a de que nossas sensibilidades se tornaram mais aguçadas para o problema.

Talvez aguçadas demais. Como observaram dois estatísticos do Ministério da Justiça francês citados por Guillebaud: "Este importante aumento não significa, necessariamente, que os atos cometidos se tenham multiplicado. O aumento reflete, ao menos em parte, o recrudescimento da repressão, tornado possível pela evolução geral das sensibilidades e dos comportamentos". (Para o Brasil, poderíamos lembrar o caso da Escola Base, de triste memória para o jornalismo).

Nesse meio tempo, é claro, as penas foram sendo agravadas, pois, a cada novo caso de repercussão nacional, os deputados reformavam a lei para acrescentar-lhes alguns anos de cadeia. E a coisa também vazou para o Direito civil: na tentativa de ficar com a guarda de filhos e o melhor quinhão nos casos de divórcio, pais passaram sistematicamente a acusar o ex-companheiro(a) de incesto.

A situação se tornou a tal ponto esdrúxula, que magistrados franceses vieram a público para denunciar a caça às bruxas. O juiz e escritor Denis Salas comentou numa edição de 1996 da revista "Esprit": "Está acontecendo uma espantosa reversão do tempo. Ao tempo imóvel e silencioso do incesto sucede-se uma desabalada mecânica penal. Deslocamentos intempestivos da criança e encarceramento do pai reproduzem espetacularmente uma violência do Estado diante da violência do indiferentismo".

Eu me pergunto se seria viável publicar hoje um romance como "Lolita", de Vladimir Nabokov, em que o autor conta a história de paixão e sexo entre um padrasto e sua enteada de 12 anos. Não que "Lolita" tenha sido recebido sem problemas quando de sua aparição, em 1955. Mas, num tempo em que a censura a obras literárias ainda era bastante comum, ele conseguiu chegar às livrarias da Europa e dos EUA. Receio que, atualmente, embora a liberdade de expressão seja uma garantia constitucional na maioria dos países ocidentais, uma obra como "Lolita", apesar de sua indiscutível qualidade literária, teria dificuldades para encontrar uma grande editora disposta a lançá-la.

Cuidado, nem Guillebaud nem eu estamos sugerindo que não existam pedófilos de verdade que precisam ser detidos ou que crimes sexuais contra a infância são uma brincadeira de criança. É preciso que os delitos reais sejam apurados e punidos. É igualmente importante que casos enterrados no passado, frequentemente acobertados por instituições religiosas e congêneres, ganhem a luz do dia.

O meu receio é que estejamos delegando coisas demais à Justiça. Como já escrevi neste espaço, a melhor receita para produzir o pior dos mundos é aplicar com máximo zelo todas as leis vigentes.

Qualquer código penal do mundo traz dois tipos de normas: as que são absurdas e inócuas e as que são úteis e racionais, mas que, em várias situações, precisam ser "esquecidas".

Exemplos típicos da primeira categoria são a lei do Estado norte-americano de Minnesota que proíbe homens de manter relações sexuais com peixes vivos e as disposições do Distrito de Columbia (a cidade de Washington) que vedam a casais todas as posições sexuais que não a papai com mamãe. Mais exótico, um dispositivo da cidade de Oblong, Illinois, prevê sanções para o homem que praticar sexo no momento em que caça ou pesca no dia de seu casamento.

No segundo grupo, o das regras às vezes úteis, encontramos normas que têm uma racionalidade, mas que não devem ser aplicadas de maneira draconiana, sob pena de gerar grandes injustiças. É o caso dos artigos 280 e 281 do Código Penal brasileiro, que vedam respectivamente o fornecimento de remédio em desacordo com a receita médica e o exercício ilegal da medicina. Na teoria eles fazem todo o sentido, mas podem converter-se numa ameaça se aplicados por exemplo contra alguém que ceda um anti-inflamatório a um colega com dor de cabeça.

O novo crime de estupro --cujo tipo penal é muito porcamente definido, pois "ato libidinoso" pode significar qualquer coisa-- faz parte dessa segunda categoria. Assim como nem toda aspirina passada sem receita corresponde a um crime, nem tudo o que parece ato libidinoso aos olhos de alguém é um ato que mereça repressão. E o juiz nem sempre é a melhor pessoa para decidir, pois apenas levar casos como o do italiano à Justiça no ambiente de pedofilofobia atual já implica grandes prejuízos. Depois que as engrenagens da polícia e da Justiça são postas para funcionar, é difícil pará-las.

Esses casos, antes de ser judicializados, precisam ser considerados no âmbito das relações sociais (do "jeitinho", mas no bom sentido). As pessoas devem, antes de mais nada, pensar duas vezes antes de meter o bedelho na vida de quem nem conhecem. Existem, por certo, circunstâncias em que a intromissão é necessária para proteger menores em perigo real, mas ela precisa estar cercada de cuidados para que não se converta em acusações caluniosas e prejuízos para todos, inclusive o menor que se queria proteger. Coisas como conversar com a mãe ou tentar levantar discretamente antecedentes poderiam ter feito diferença aqui.

Não podemos substituir o campo das relações sociais, dos laços de pertinência analisados em seu devido contexto, pelo juiz. Se fosse tão simples, poderíamos até dar um passo a mais e dispensar os próprios magistrados, que seriam tranquilamente substituídos por programas de computadores.

Hélio Schwartsman é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

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