Pensata

Hélio Schwartsman

17/09/2009

Lula vai às compras

Eu e armas sempre mantivemos prudente distância um do outro, de modo que nunca desenvolvi as competências necessárias para palpitar sobre quais caças, helicópteros e submarinos mais convêm às Forças Armadas brasileiras. Do ponto de vista político, entretanto, essa novela toda do acordo militar com a França está muito malparada.

Acho até que o governo pode ter um importante argumento a seu favor quando sustenta que possuir a França como parceira resultará em maior transferência de tecnologia e liberdade para utilizá-la. Não sei como os suecos agem nessa matéria, mas é fato que os EUA são em geral bastante restritivos. Washington se reserva, por exemplo, poder de veto sobre a venda de equipamentos militares fabricados no Brasil quando desenvolvidos a partir de tecnologia norte-americana. Por conta de limitações contratuais desse gênero, o Brasil e a Embraer já foram impedidos de negociar aviões Super Tucanos com a Venezuela. O computador de bordo, o motor, a hélice e o sistema inercial de voo da aeronave têm origem nos EUA.

Só que a questão tecnológica não é o único ponto que precisa ser considerado. Preço e adequação do equipamento às nossas necessidades são quesitos pelo menos tão importantes quanto a transferência de conhecimento científico. Não me parece que essas questões tenham ainda sido bem apresentadas à sociedade. Estamos, afinal, falando de um investimento que deve chegar à casa das dezenas de bilhões de reais até 2020.

E eu receio que, aqui, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tenha metidos os pés pelas mãos. Não sou daqueles que acham que tudo o que Lula faz é errado. Neste caso preciso, a trapalhada presidencial --ele se antecipou à própria avaliação da Aeronáutica sobre qual seria a aeronave mais indicada-- pode até resultar em melhores condições para o Brasil. Os EUA, por exemplo, já mudaram seu discurso para dizer que podem ampliar o acesso do Brasil à tecnologia, se ficarmos com os jatos fabricados pela Boeing. A França, a fim de assegurar para si o negócio de US$ 4 bilhões (só pelos caças), também deverá ampliar as concessões. É improvável que os suecos não façam um novo lance. Dificilmente levaremos os aviões de graça, como galhofou Lula, mas há uma chance de conseguirmos poupar alguns tostões nesta reta final.

O problema é que essa eventual economia ocorrerá à custa da imagem de seriedade do Brasil nesta primeira megaconcorrência internacional que tentamos organizar. Ninguém ignora que no final será provavelmente a questão política que definirá quem fica com o contrato. Mas a própria política envolve muito de teatro, e Lula, para atuar como um bom artista, deveria pelo menos ter seguido a marcação, fingido que conduzia o processo como manda o figurino, isto é, respeitando os prazos que nós próprios estabelecemos. No mínimo, isso teria poupado ao Itamaraty alguns arestas desnecessárias com a diplomacia dos EUA. E, por mais francófilo que seja o ministro Nelson Jobim, o artífice da parceria com Paris, o Departamento de Estado ainda é mais importante do que o Quai d'Orsay, tanto no plano da política internacional como também dos interesses do Brasil.

Receio, entretanto, que eu esteja me perdendo. Não são essas questiúnculas que eu gostaria de discutir hoje, mas sim o problema mais geral do papel das Forças Armadas neste início de século 21.

E, aqui, as duas perguntas fundamentais, das quais advêm todas as demais bem como suas respostas é: o Brasil necessita de Forças Armadas? Em caso afirmativo, de que tipo?

Como já comentei numa coluna antiga, alguns países podem perfeitamente existir sem os militares. Na verdade, passaram a viver melhor depois que aboliram seus exércitos. Refiro-me especificamente ao caso da Costa Rica, que, após experimentar os horrores de uma violenta guerra civil, decidiu, em 1948, extinguir suas Forças Armadas. Desde então, e ao contrário de seus vizinhos que mantiveram exércitos, a Costa Rica tem vivido na mais perfeita paz cívica. Estão na mesma situação do país centro-americano 20 Estados, a maioria, é verdade, bem pequenos, como Samoa, Vanuatu, outros nem tanto, a exemplo do Panamá e da Islândia. Registre-se que a experiência de acabar com as Forças Armadas nem sempre deu certo. Pelo menos no Haiti foi um desastre.

Renunciar a manter um exército não implica desistir da soberania nacional. Quase todas as nações que renunciaram ao militarismo celebraram acordos com vizinhos mais poderosos que se encarregaram de sua segurança externa.

Num contexto geopolítico que cada vez mais rejeita as guerras para aquisição de território, a extinção de Forças Armadas se afigura como uma ideia tentadora, que libera recursos para investimentos sociais e elimina um foco potencial de tensões.

Só que o Brasil não é Andorra. Nós não vamos pedir à Bolívia nem à Venezuela ou aos EUA que nos defendam em caso de ataque estrangeiro. Precisamos, portanto, manter um Exército, uma Marinha e uma Força Aérea. Resta definir de que tipo e para quais propósitos.

No mundo contemporâneo, é grande a assimetria entre as várias Forças Armadas nacionais. Tomemos o caso do Exército brasileiro. Ele mantém razoável poder dissuasivo em relação a nações como Paraguai, Uruguai, Bolívia --que aparentemente não têm planos de nos atacar--, mas duraria poucas semanas diante de uma força tecnologicamente muito superior como os EUA.

Se quisermos enfrentar uma improvável invasão norte-americana, é melhor treinar desde já os recrutas e a própria população em ações de sabotagem e táticas de guerrilha. É só através dessas técnicas que afegãos e iraquianos vêm conseguindo resistir à formidável máquina de guerra dos EUA.

Um espírito de porco poderia perfeitamente perguntar: se nossas Forças Armadas só servem para nos proteger de quem não têm condições de agir contra nós e são inúteis diante de um adversário mais poderoso, por que gastar bilhões de reais com esse "elefante branco"? Receio que a questão seja um pouco mais complicada. Não me parece absurdo supor que a baixa beligerância de nossos vizinhos se deve pelo menos em parte ao fato de possuirmos militares.

Acho que o papel de nossas Forças Armadas deve ser este mesmo: servir como poder dissuasório. É preciso, porém, que tomemos todo o cuidado para não crescer demais, hipótese em que poderíamos dar largada a uma corrida armamentista na região, um cenário no qual todos perdem, exceto os grandes fabricantes de armas --e os políticos que invariavelmente embolsam uma porcentagem desses contratos.

É nesse contexto que eu me pergunto se o presidente Lula tem sido sábio em suas visitas aos supermercados bélicos.

Poucos contestam que os Mirages hoje utilizados pela Aeronáutica já estão em idade de aposentar-se. Mas será que realmente precisamos de 36 caças e mais caros que os F-18 Super Hornet, que são bons o bastante para a Força Aérea dos EUA?

De modo análogo, não entendo bem a necessidade do caro e obsoleto porta-aviões que os franceses nos empurraram há um par de anos. Em meus parcos conhecimentos de estratégia militar, porta-aviões servem para projetar poder aéreo, o que me parece desnecessário para um país cujas Forças Armadas devem servir apenas para a defesa.

E, já que a ideia é fazer perguntas, por que diabos precisamos de um submarino nuclear? Pelo que li, o grande atrativo desse tipo de belonave é que ela pode permanecer submersa e quase indetectável por tempo ilimitado (ou melhor, enquanto durarem as provisões de água e comida). Isso é uma tremenda vantagem para quem pretende, ainda que só teoricamente, disparar mísseis nucleares estratégicos ou táticos. Para a Marinha do Brasil, porém, cuja Constituição proíbe o desenvolvimento de armamento atômico, tais submarinos me parecem um brinquedo caro e perigoso, já que incentivaria alguns de nossos vizinhos a buscar algo semelhante.

Mesmo se a ideia é apenas desenvolver um melhor domínio do ciclo nuclear, acho que poderíamos prescindir da fabricação do combustível para submarinos. Ser capaz de fazer não implica produzir de fato. E acho que há mais sabedoria do que fraqueza na renúncia às armas atômicas.

Seja como for, é lamentável que, em vez de debater a função e as dimensões de nossas Forças Armadas, estejamos mais uma vez embrenhados em fazer política partidária defendendo ou atacando os aspectos menos relevantes do acordo.

Hélio Schwartsman é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

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