Pensata

Hélio Schwartsman

08/10/2009

Pesadelo olímpico

Eu sinto por dar uma de estraga-prazeres, mas essa história de Jogos Olímpicos no Rio pode ser a maior vitória de Pirro da história desde que o próprio Pirro destruiu os exércitos romanos na Batalha de Ásculo, em 239 a.C. O pior é que 90% do que li na imprensa são relatos ufanistas de como o Brasil do futuro venceu as potências decadentes, a começar dos norte-americanos, que, apesar de terem mobilizado o próprio Barack Obama, experimentaram humilhante derrota. (Pensando bem, talvez seja melhor assim; que festejemos agora, pois ainda teremos muitos anos para lamentar o dia em que o Rio de Janeiro foi escolhido para sediar a competição de 2016).

Uma imagem exibida pela TV durante a cerimônia de anúncio da cidade vencedora traduz muito bem os meus receios: ali, em meio a Lula, Pelé, Paulo Coelho e outros cabos eleitorais do Rio, despontava Henrique Meirelles, presidente do Banco Central do Brasil. Que diabos um presidente de BC faz numa solenidade essencialmente esportiva? O meu temor é o de que ele tenha viajado a Copenhague como garantia de que o Brasil não hesitará nem mesmo em girar a maquininha de fazer dinheiro, se isso for necessário para a realização dos Jogos. Não sei se isso faz ou não parte do espírito olímpico, mas é fato que não faz parte do espírito de responsabilidade que deve orientar a finança pública.

Dizem que um povo que não conhece a sua história está fadado a repeti-la. Isso é uma tremenda de uma bobagem. É perfeitamente possível que uma nação ignore o seu passado e jamais o reencene, da mesma forma que pode conhecê-lo à perfeição e, ainda assim, recair nos mesmos erros. Em todo caso, a máxima vale por nos lembrar de conferir os precedentes. E é exatamente aí que o sonho olímpico dá lugar ao pesadelo.

Tomemos o caso dos Jogos Pan-Americanos de 2007. Um quinquênio antes, em 2002, quando da candidatura do Rio de Janeiro a sede da competição, o Comitê Olímpico Brasileiro estimara o total de gastos em R$ 414 milhões. A maior parte seria bancada pela prefeitura. Cerca de 20% dos recursos viriam da iniciativa privada. Ao fim e ao cabo, a brincadeira saiu por R$ 3,7 bilhões --nove vezes mais. Evidentemente, mais da metade do dinheiro saiu das burras federais; praticamente nada veio de empresas particulares.

Se aplicarmos o mesmo fator 9 aos R$ 30 bilhões agora orçados para as Olimpíadas, a conta ficará em módicos R$ 270 bilhões. Mas talvez o buraco não seja tão grande. Não sou um especialista, mas a estimativa de R$ 30 bilhões me parece um pouco menos irrealista do que os R$ 414 milhões do Pan. O número atual pelo menos não está a muitos anos-luz de distância do que outras cidades gastaram. Em Pequim 2008, estima-se que tenham sido consumidos R$ 72 bilhões (ditaduras como a chinesa não costumam trabalhar com contas abertas). O plano para Londres 2012 prevê gastos da ordem de R$ 34 bi. Lanço desde já meu bolão Rio 2016: Em quantas vezes o orçamento da competição vai estourar? Meu palpite, contido, é 4.

Antes de prosseguir, é melhor destrinchar um pouco a estrutura financeira da organização de uma Olimpíada. Existe o chamado orçamento Cojo (Comitê Organizador dos Jogos), que diz respeito à parte esportiva propriamente dita mais as cerimônias de abertura e encerramento, e o não Cojo, que alimenta os investimentos em infraestrutura. No caso brasileiro, o Cojo foi estimado em R$ 5,6 bilhões e o não Cojo em R$ 23,2 bilhões.

Para a parte Cojo, calcula-se que 30% dos gastos sejam bancados pelo Comitê Olímpico Internacional; 45% pela venda de ingressos, direitos de transmissão do evento e licenciamento de produtos; e 24% divididos em partes iguais pelas três esferas de governo. É possível até que a empreitada dê lucro, dependendo de qual for o real interesse de anunciantes pela competição. Vale, porém, observar que em Londres o setor público não está por enquanto colocando um penny no orçamento Cojo.

A conta pesada mesmo é a da infraestrutura, que, ao que tudo indica, acabará recaindo em grande parte sobre o governo federal. E aqui entra a questão da justiça tributária. Não há muita dúvida de que os Jogos acabarão beneficiando diferentes pessoas em diferentes proporções. Nem vou mencionar as empreiteiras e políticos, em especial os ligados ao Comitê Organizador, cujos ganhos tendem a ser obscenos. Mesmo no mundo que fica à margem da corrupção, alguns setores do Rio como o hoteleiro e de turismo devem faturar alto. Atividades relacionadas, como o comércio em geral, também devem ver seus ganhos ampliados. Até os cariocas comuns sairão no lucro, se projetos como a ampliação do Metrô e a despoluição da baía da Guanabara saírem do papel --ao contrário do que ocorreu no Pan.

Alguns evidentemente poderão perder muito, se tiverem o azar de sofrer uma desapropriação ou sabe-se lá o quê. Tudo isso, é claro, sem falar no transtorno de sete anos de obras.

O problema é justamente que existe uma apropriação privada dos benefícios, enquanto os investimentos acabam sendo divididos por todos os brasileiros. Por que o contribuinte do Acre precisa subsidiar pesadamente um evento que vai ser bom quase que exclusivamente para os habitantes do Rio (se é que vai mesmo)? É o famoso comunismo às avessas: privatização dos lucros e socialização dos prejuízos.

Para tentar minorar um pouco os efeitos dessa "redistribuição de débitos", o Reino Unido criou um imposto especial que é cobrado aos londrinos, com vistas a reduzir o fardo que cairá sobre porções do país que não se beneficiarão (nem em teoria nem na prática) dos Jogos. Por aqui, não se escuta nem uma palavra sobre o assunto.

Não me entendam mal. Não estou em campanha contra o Rio. Idêntico raciocínio vale para os "investimentos" na Copa, que incluem São Paulo e outra grandes cidades. Só não fiz uma coluna para vilipendiar a competição futebolística porque estava em ano sabático quando nossa "vitória" foi anunciada.

Cuidado. Não me conto entre os que acham que o Brasil não pode dar nenhum passo um pouco mais extravagante enquanto não tiver erradicado o analfabetismo e baixado a mortalidade infantil a níveis civilizados. O problema, parece-me é o acúmulo de gastos, vá lá, inessenciais empenhado pelo atual governo: 30 bi nas Olimpíadas, outros 30 na Copa, e mais várias dezenas de bilhões na compra de caças e submarinos franceses, para citar apenas casos que andaram frequentando as manchetes dos jornais.

Fazer política é estabelecer hierarquias e definir perdedores e vencedores. É incrível a capacidade de Lula de criar um megaexército de perdedores e fazê-los crer que são vencedores. Se continuar assim, vou acreditar mesmo que ele ainda vai, como jocosamente prometeu, trazer para o Brasil os Jogos Olímpicos de Inverno. Pensando bem, com mais R$ 30 bilhões, não deve ser tão difícil assim fazer nevar por um par de semanas em Campos do Jordão, Petrópolis ou Garanhuns.

Hélio Schwartsman é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

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