Pensata

Hélio Schwartsman

12/11/2009

Chamem os universitários

Raras vezes vi um tiro no pé tão bem disparado. Por qualquer ângulo imaginável que se analisasse, afigurava-se como ruinosa a decisão da Uniban de expulsar, através de anúncio nos jornais, Geisy Arruda, a garota que há três semanas quase apanhara de seus colegas universitários por andar com um vestido considerado curto demais.

Quando a direção da universidade se deu conta da magnitude de seu desatino, voltou atrás e desexpulsou a jovem, no que foi interpretado mais como confissão de leviandade do que como demonstração de coragem por ter admitido, ainda que indiretamente, seu erro. Em suma, o episódio pode ser qualificado como um desastre total, ou "dafaecatio maxima", como escrevi na edição impressa (só para assinantes da Folha de domingo. Acho que nem um estudante do primeiro ano do curso de marketing da própria Uniban teria cometido tantos e tamanhos equívocos.

Com sua atitude, a universidade conseguiu a proeza de colocar do mesmo lado a UNE e a blogsfera de direita, o Ministério Público e a OAB, o primeiro escalão do governo Lula e associações feministas. Até a imprensa estrangeira deu destaque à história, que apareceu em órgãos tão distintos como "The New York Times", "China Daily" e "Manila Bulletin". Alguns dos novos epítetos sugeridos para a instituição incluem Unibando e Unitaleban. Atenho-me aos publicáveis.

O que me surpreendeu nessa história toda é que a grita contra a absurda expulsão era totalmente previsível. A própria Uniban já experimentara um aperitivo do clima reinante com a repercussão que o caso obtivera antes da ideia de jerico de convidar a menina a deixar a escola. Como o sucesso empresarial da instituição indica que seus diretores não são exatamente idiotas, fico me perguntando como puderam entrar nessa fria.

O mais perto de uma hipótese racional a que cheguei, é que a medida visaria ao público interno. O episódio deve ter pegado mal entre uma determinada casta de alunos e seus financiadores (pais). A expulsão seria a tentativa de pôr um ponto final sem ter de admitir, ainda que implicitamente, que a universidade tem um bando de arruaceiros como alunos (a tal da "mancha no diploma" a que um estudante se referira) e sem ter de cavar muito fundo para encontrar os 700 responsáveis-pagantes pelo assédio contra Geisy. No fundo, seria a materialização nua e crua do "o cliente sempre tem razão".

O problema é que esse princípio, irretocável quando o negócio em questão é uma padaria ou um serviço de televendas, não funciona tão bem na educação. No plano objetivo, essa é uma atividade em que não basta contentar o freguês. É preciso também incutir-lhe algum conteúdo, geralmente técnico, na cachola, o qual será medido através das avaliações do Ministério da Educação (MEC).

E nem sempre o objetivo de agradar o aluno e o de ensinar-lhe algo andam juntos. Se o estudante é um preguiçoso, por exemplo, instruí-lo vai necessariamente causar-lhe dissabor. Se a escola opta por satisfazer aos apetites inatos de seus fregueses, tende a ter piores resultados nas provas do MEC. Se, por outro lado, decide investir na qualidade técnica de seus formandos, acaba alijando uma parte importante de seu mercado potencial, que ou não tem condições de assimilar muito conteúdo ou não está disposta ao esforço de fazê-lo. Encontrar o ponto de equilíbrio entre essas duas atitudes é tudo menos trivial. Ajuda quando você tem um público que saiba suportar bem algum nível de frustração, isto é, que não seja partidário muito entusiasmado do "o cliente sempre tem razão".

Para complicar um pouco mais o quadro, existe ainda o plano subjetivo. Nossos cérebros poderiam perfeitamente ter sido projetados por Bill Gates: vieram com uma porção de "bugs", entre os quais um que estipula que determinadas coisas não podem ser vendidas. Se você regalar sua esposa com um caríssimo jantar no melhor restaurante da cidade na expectativa de conseguir uma noite de enlevos lúbricos, será descrito como um romântico incorrigível. Mas, se preferir simplificar as coisas e oferecer-lhe uma soma em moeda corrente para o mesmíssimo fim, só o que conseguirá é o divórcio e a reprovação de todos os seus familiares e amigos.

A educação fica no meio do caminho entre o sexo e a bolsa de commodities: nem bem um tabu, nem uma mercadoria "ordinária". Não tratamos donos de escolas particulares como cafetões, mas vemos suas atividades sempre com uma ponta de desconfiança, em especial quando eles dão provas mais explícitas de que visam ao lucro. Daí que não engolimos muito tranquilamente estratégias de marketing educacional que incluam o oferecimento de brindes e badulaques. Mesmo táticas que aceitamos como plenamente legítimas em outros campos tornam-se suspeitas quando aplicadas na esfera pedagógica. Um cartola do futebol tem praticamente a obrigação de contratar o melhor time possível. O mesmo vale para o CEO de uma empresa quando recruta seus executivos, funcionários e busca formar sua carteira de clientes. Mas, se um empresário da educação oferece incentivos para atrair bons alunos para sua escola, a fim de melhorar sua avaliação nos testes do MEC, não conseguimos deixar de ver aí pelo menos uma pontinha de corrupção.

Em suma, gostamos de pensar que a educação é uma área especial, na qual as regras de mercado se aplicam, mas não inteiramente. O lucro é tolerado, desde que ele não se configure como obstáculo à "tarefa do educador" -ainda que tenhamos dificuldades para defini-la de modo mais consistente do que combinando-a com as palavras de ordem de sempre: ética, cidadania, moralidade.

Tais considerações ajudam a entender a dimensão que tomou a "operação UniOban". A reação da universidade de expulsar Geisy desponta como uma tripla traição: a instituição não apenas tomou a atitude fascista e chauvinista de investir contra a vítima para proteger os mais fortes, como o fez no contexto especial da educação, uma área que preferimos imaginar como governada por princípios elevados e não por interesses imediatistas ou financeiros. Como se não bastasse, quando a direção se deu conta de que poderia ver seus lucros reduzidos, não hesitou em desmantelar o que apresentara 24 horas antes como defesa dos "princípios éticos", da "dignidade acadêmica" e da "moralidade".

Para tornar a história jornalisticamente ainda mais "perfeita", ela tem temperos sexuais e pode ser descrita como um embate da garota pobre e injustiçada contra empresários gananciosos e "pitt-boys" filhinhos de papai.

Como tudo isso é pelo menos um pouco verdade, o equívoco da Uniban assume proporções sociológicas.

Hélio Schwartsman é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

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