Pensata

Hélio Schwartsman

30/12/2009

Potência de bananas

Agora que o Brasil virou potência mundial e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi escolhido o homem do ano pelos jornais "Le Monde" e "El País", só resta a nós colunistas prorrogarmos indefinidamente nossas férias, já que não há mais dificuldades a resolver nem, portanto, problemas a comentar. Se arrisco estas temerárias linhas, é porque, duas semanas atrás, antes de entrarmos no exclusivíssimo clube de países do Primeiro Mundo, eu havia assumido o compromisso de voltar a escrever no dia 31 de dezembro. E, como promessa é dívida, vejo-me agora compelido a procurar pelo em casca de ovo, a fim de preencher o espaço desta coluna.

Brincadeiras à parte, sempre fui um otimista cauteloso. Na escala da história humana, que se mede em punhados de séculos e não nas mais familiares décadas, as quais constituem o horizonte de nossas vidas, o mundo em geral e o Brasil em particular nunca estiveram tão bem. Faço tal afirmação com base no mais visceral dos critérios, que é o da quantidade e qualidade da de vida.

Com efeito, nunca fomos em tão grande número e vivendo tanto. De 1900 até hoje, a esperança de vida do brasileiro saltou de 33,7 para 72,3 anos (dado de 2008). Indicadores básicos como a mortalidade infantil seguem caindo. A alfabetização, embora ainda longe do ideal, vai lentamente melhorando. A educação básica e superior continuam muito ruins, mas já estão disponíveis para praticamente todos. Até os pobres estão consumindo (e isso, creio, é em boa medida mérito de Lula, sem ironias).

Se há um aspecto que ainda nos deixa mais perto das repúblicas de bananas do que da zona civilizada do planeta é o da administração da Justiça. Cuidado, não se devem aqui nutrir ilusões. Favorecimentos ilícitos ocorrem em toda parte. O que diferencia uma Suécia de uma Suazilândia é se a corrupção tem ou não caráter endêmico e se o sistema é ou não eficiente.

No Brasil, receio, o Judiciário não sobrevive a nenhum dos dois critérios. Ele ainda é muito afeito a interferências indevidas, seja pela corrupção simples, consubstanciada na compra de sentenças, seja por mecanismos mais sutis de tráfico de influência, como o prestígio social das partes e a rede de amizades de seus advogados. O velho brocardo segundo o qual no Brasil apenas pobres, pretos e prostitutas vão para a cadeia não dista muito da realidade.

É no quesito eficácia, entretanto, que a Justiça se mostra epidemiologicamente mais perversa. Enquanto a corrupção e o tráfico de influência se mostram decisivos numa parcela minoritária dos casos julgados, a ineficiência afeta todos, sem exceção. Para não jogar toda a carga sobre nossos pobres juízes, convém observar que os vícios atingem todos os elos da cadeia, da investigação policial ao despreparo do Ministério Público passando pela extrema generosidade recursal, que permite a qualquer advogado esperto prolongar por anos, senão décadas, a duração de um processo. E, frequentemente, postergar uma decisão significa beneficiar uma das partes.

A fim de dar materialidade ao que estou dizendo, tomemos alguns casos recentes. No mais rumoroso deles, o do pequeno Sean Goldman, agora com 9 anos, a coisa ganha ares de surrealismo. Até que o garoto entrou no Brasil de forma legal, no longínquo ano de 2004. Ele chegou com a mãe para passar duas semanas de férias e tinha a autorização do pai para tanto. Só que Bruna Bianchi decidiu não retornar. Quando a autorização de viagem venceu, no dia 18 de julho, configurou-se o que a legislação internacional qualifica como sequestro civil de menor. Se Bruna queria separar-se do marido e ficar com o garoto, teria de resolver a pendência numa Corte de Nova Jersey, que era onde a família mantinha residência. O Brasil, como signatário da Convenção de Haia de 1980, convertida em norma interna pelo decreto 3.413/2000, tinha a obrigação, nos termos dos artigos 7, 10 e 11 do diploma, de tomar as providências para que o garoto retornasse o mais rapidamente possível. A regra vale tanto para as autoridades administrativas como judiciais.

Bruna contraiu novas núpcias com João Paulo Lins e Silva e foi, como é típico, enrolando a situação judicial. Dizem as más línguas que foi auxiliada pelo novo marido e seu pai, Paulo Lins e Silva, que militam justamente na área de direito de família no Rio e gozam de grande prestígio na área. Não duvido, mas tampouco considero essencial. Prolongar uma ação judicial através das fartas possibilidades recursais oferecidas pela legislação não é exatamente uma tarefa impossível.

Seja como for, em 2008, ocorreu uma tragédia. Bruna morreu no parto de sua segunda filha. Em termos jurídicos seria difícil imaginar uma situação mais cristalina. Quando do impedimento definitivo de um dos pais, cabe ao outro exercer com exclusividade o poder familiar. É o que diz o artigo 1.631 do Código Civil Brasileiro, é o que diz a legislação norte-americana e de praticamente todos os países. Se antes havia argumentos a ponderar sobre quem deveria ter a guarda de Sean, eles deixaram de existir com a morte de Bruna. Só que, em vez de devolvê-lo ao pai, a Justiça fluminense deu ao padrasto João Paulo a guarda do menino, por "paternidade socioafetiva", numa manobra que não apenas contraria a letra da lei como também os usos, costumes e prazos do próprio Judiciário brasileiro é difícil não acreditar aqui que a influência da família Lins e Silva não tenha contribuído para a decisão.

É claro que, sobretudo no direito de família, poderia haver exceções ao que preconiza a regra geral. A manutenção do garoto no Brasil seria justificável, por exemplo, se houvesse uma história de violência ou abuso por parte de David Goldman, mas, aparentemente, esse jamais foi o caso. Outra exceção possível, citada pelos Bianchi e os Lins e Silva e prevista na Convenção de Haia, era o fato de que Sean já estava no país havia mais de um ano e estava integrado a seu novo ambiente. É verdade, mas o prazo só transcorreu porque a Justiça brasileira deixou de cumprir sua obrigação legal de repatriar o menino rapidamente. (O absurdo lógico lembra o da recém-aprovada PEC dos precatórios, que permitirá ao Poder Público pagar "com desconto" as dívidas a que foi condenado pela simples razão de que é um mau pagador).

De todo modo, nos quase cinco anos em que tramitou, o caso Sean passou por todas as instâncias do Judiciário brasileiro. O mérito mesmo da questão, sobre o qual havia pouca dúvida, foi apreciado em pouquíssimas ocasiões.

Outros dois casos ilustres, o do médico Roger Abdelmassih e o do banqueiro Daniel Dantas, também lançam dúvidas sobre juízos de mérito, procedimentos e possíveis influências espúrias.

Abdelmassih, acusado de algumas dezenas de estupros de pacientes, aguardava julgamento em prisão preventiva. Foi solto na véspera do Natal por um habeas corpus impetrado no Supremo Tribunal Federal. Embora nem todos os juízes a cumpram, a regra brasileira é clara: todos os que sejam réus primários e tenham endereço certo devem responder ao processo em liberdade até o trânsito em julgado, a menos que haja fortes motivos para acreditar que o acusado vai destruir provas, coagir testemunhas ou fugir do país. Podemos achar essa norma exagerada (eu acho que a prisão poderia ser o padrão após a primeira sentença condenatória), mas, enquanto ela vigora, deve ser cumprida. Mais absurdo, me parece, é os juízes ficarem criando subterfúgios lógicos para tentar transformar a prisão preventiva em regra quando deveria ser exceção. No caso de Abdelmassih, é possível até que a celebridade do réu e a natureza sexual do crime tenham contribuído para mantê-lo na cadeia. Fosse a situação menos rumorosa, não creio que ele teria passado tantos meses no xilindró. A Justiça brasileira ainda é escandalosamente classista. Doutores muito raramente são encarcerados.

Quanto a Daniel Dantas, estou entre aqueles que acham que ele deve ser culpado de alguma coisa. Mas, para impor-lhe uma sanção, é necessário antes demonstrar que ele cometeu um crime. Igualmente importante, é preciso fazê-lo sem violar nenhuma garantia processual. O ímpeto quase religioso com que alguns de seus algozes o caçavam (até o nome escolhido para a operação da PF, Satyagraha, que significa "firmeza da verdade" em sânscrito, tem algo de teológico) sugere que o Judiciário atue com o máximo de cautela. Como boa parte do PIB brasileiro está envolvida nessa história, é difícil imaginar que não houve influências políticas e econômicas.

Não pretendo, porém, proferir aqui a sentença definitiva contra ou a favor de quem quer que seja. Meu propósito para esta coluna é apenas indicar que nosso Judiciário tem problemas. Mesmo que ele fosse absolutamente imune a todo tipo de corrupção e tráfico de influência o que não é, ainda assim seria preciso reequilibrá-lo para atender às necessidade de uma sociedade de massas ávida pela resolução rápida de seus conflitos.

É fundamental olhar mais objetivamente para o mérito das demandas, sem perder-se numa plêiade de possibilidades de recurso que favorecem apenas os que estão prontos para longas batalhas judiciais, que são fundamentalmente o Estado e as grandes empresas, ou seja, os mais ricos. E é preciso cuidar disso sem sacrificar o primado dos direitos e garantias individuais, que é o que distingue sociedades civilizadas de totalitarismos.

Não é tarefa fácil, mas é preciso avançar quanto antes nesse caminho. Sem um Judiciário razoavelmente confiável e ágil, o Brasil, em que pese os esforços de nosso hirsuto líder, permanecerá no clube das repúblicas de bananas.

Hélio Schwartsman é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

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