Pensata

Hélio Schwartsman

04/02/2010

Abortando o problema 2, a curetagem

Como era previsível, a coluna da semana passada, na qual defendi o aborto, gerou uma série de manifestações. Houve desde os que me chamaram de assassino --acusação indevida, já que, por razões anatômicas, eu nunca interrompi uma gravidez-- até os que concordaram com minhas ponderações, passando pelos que fizeram objeções instigantes. É a estes últimos que pretendo responder hoje.

Comecemos pelo que eu não afirmei. Jamais argumentei que o aborto deveria ser liberado porque um número bastante grande de mulheres o fazem de maneira clandestina. O que eu procurei mostrar (sem muito sucesso, parece) é que existem normas cuja aplicação universal seria desejável e outras que não. Por exemplo, a maioria de nós há de concordar qu e seria bom se todos os assassinos fossem descobertos e presos, não importa quantos presídios tivéssemos de construir.

Vou um pouco mais longe. Embora nem todos vão me acompanhar, eu aplaudiria um mecanismo pelo qual cada infração de trânsito fosse eletronicamente identificada e a correspondente multa enviada pelo correio. Só tenho dúvidas se os custos desse sistema se justificam diante do benefício. De toda maneira em ambas as situações, acredito, teríamos um país melhor.

Há, contudo, leis que, se impostas integralmente, acabariam produzindo mais injustiça do que justiça. Um bom exemplo são os artigos 280 e 282 do Código Penal. Não é que não façam nenhum sentido. Eles vedam respectivamente o fornecimento de remédio em desacordo com receita médica e o exercício ilegal da medicina. O problema é que, cominados de modo draconiano, eles me levariam à cadeia por ceder um comprimido contra dor de cabeça a um colega com enxaqueca.

Por amor à completude, poderíamos citar uma terceira categoria de normas, que é a daquelas completamente estapafúrdias. Lembro-me de uma lei do Estado de Michigan (onde vivi por quase um ano) que proíbe amarrar jacarés aos hidrantes. Lá também existe uma regra segundo a qual casais casados que não vivam sob o mesmo teto devem ser presos. Imagino que a jurisprudência já a tenha sabiamente convertido em letra morta. Quanto aos jacarés, nem é preciso fazer nada. Em Michigan, com temperaturas que chegam a -25C, na maior parte do ano os jacarés ficam tão quietinhos e nem é necessário amarrá-los.

A proibição do aborto, acredito, encontra-se em algum ponto entre a terceira e a segunda categorias. Condenar a mulher que decidiu interromper uma gravidez indesejada (e os que a ajudaram) apenas piora a vida dela e de outros filhos que possa ter, sem acrescentar nenhum bônus à sociedade, senão o de satisfazer o senso moral de pessoas que nem ao menos estão diretamente envolvidas no problema.

(E, já que na coluna anterior mencionei "leis que não pegam", tenho para mim que mais ou menos a metade da humanidade --eu incluído-- terá o impulso de considerar ilegítima toda norma pela qual o Estado se arrogue o direito de decidir o que cada um pode pôr em seu próprio corpo e dele tirar. Daí que todas as leis que procurem inibir o consumo de drogas, regular a moral sexual e mesmo definir o estatuto do embrião serão recebidas como uma tentativa de usurpação por parcela considerável da sociedade).

Contra essa interpretação mais utilitarista da questão do aborto, um número não desprezível de leitores argumentou que a vida humana tem de ser um bem inviolável, ou a própria vida em sociedade seria impossível. Difícil discordar. Se existiu algum grupamento humano que permitiu ou incentivou o assassinato indiscriminado de seus membros, ele há muito já desapareceu. De mais a mais, a maioria dos direitos que qualquer um de nós defende tem como pressuposto que seu titular esteja vivo para deles desfrutar.

Ocorre que as coisas nunca são tão simples. O diabo se esconde nos detalhes, como dizem os alemães. Tomemos o famoso "não matarás" do decálogo. Trata-se de uma regra geral mas que, como todo princípio regulador, comporta exceções. A norma foi "entregue" ao autoproclamado povo eleito e, em tese, só se aplicava a outros judeus, ou teríamos dificuldade para explicar os vários massacres bíblicos em que Deus deu uma mãozinha para os exércitos israelitas. E, mesmo adotando essa interpretação exclusivista, existiam situações em que era obrigatório matar outros judeus: se eles abandonassem a crença em Yaweh ou perpetrassem outras faltas capitais.

Mesmo hoje, nossas autoproclamadas sociedades civilizadas dão medalhas aos soldados que matam mais soldados inimigos (em princípio jovens tão inocentes quanto os nossos, que apenas tiveram o azar de nascer no país errado).

Por mais rigorosos que pretendam ser os códigos penais, temos uma razoável margem para definir o que é assassinato. Há vários casos de homicídio que não são puníveis, como os cometidos em legítima defesa ou no estrito cumprimento do dever. Também temos espaço para definir quando começa e quando termina a vida. E ninguém reclamou muito quando, a partir de 1968, após criarmos o conceito de morte encefálica, começamos a mudar as legislações nacionais para permitir os transplantes de órgãos.

Vale observar que boa parte dos argumentos usados pelos antiabortistas (é um ser humano e está vivo segundo as definições tradicionais) se aplica aos doadores.

A verdade é que, historicamente, as sociedades proíbem os homicídios que tendem a desorganizá-la e toleram, quando não incentivam, os que ajudam a mantê-la coesa. É nesse contexto que se explica, por exemplo, a pena de morte, tão aplaudida por muitos dos adversários do aborto.

Permitir a interrupção voluntária da gravidez, creio, não provocaria o caos na sociedade como ocorreria se liberássemos o assassinato de pessoas atuais. Ao contrário, acho que teríamos maior organização se as garotas e seus eventuais parceiros não tivessem de arcar irremediavelmente com os resultados de sua imprevidência sexual.

De toda maneira, não me parece que a União Europeia, onde o aborto é permitido em todos os países com a exceção das ultracatólicas Malta e Irlanda (nesta última ele é lícito só para salvar a vida da mãe), seja uma confederação genocida, a reencarnação do nazismo.

E não me parece, como muitos insistiram, que o problema do regime hitlerista fosse a lógica utilitarista que adotamos na defesa do aborto. Em primeiro lugar, não creio que o Führer e seus sequazes se pautassem pelo princípio de promover a máxima felicidade para o maior número de pessoas --a definição mesma de utilitarismo. Muito pelo contrário, os elementos centrais da ideologia nazista eram principistas (a superioridade da raça ariana, a inferioridade dos judeus), ou seja, dogmas tomados como verdades autoevidentes, mais ou menos como a ideia de Deus. E, de toda maneira, os princípios cristãos professados pela esmagadora maioria dos alemães da época não bastaram para mantê-los afastados da barbárie.

Eu pretendia continuar comentando algumas objeções de fundo mais religioso, mas receio que isso terá de ficar para a semana que vem, pois a coluna já excedeu o arbitrário tamanho de 6 kilobytes que evito ultrapassar. Assim, se não houver intercorrências, na próxima quinta-feira eu vou tentar salvar a ética e o direito do precipício em que o relativismo sem freios ameaça atirá-los.

Hélio Schwartsman é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

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