Pensata

Hélio Schwartsman

25/02/2010

Castigos viscerais

Definitivamente, eu estou me tornando um populista. Pela segunda semana consecutiva, deixo-me pautar por apelos de leitores. Assim, a pedidos, comento hoje a soltura de um dos assassinos do garoto João Hélio, brutalmente morto durante um assalto no Rio de Janeiro três anos atrás. As circunstâncias do caso, para quem não se lembra, foram as piores possíveis.

Na noite da quarta-feira 7 de fevereiro de 2007, João Hélio estava no carro com sua mãe, a irmã e uma amiga da família, quando foram abordados por três bandidos, que, armados, ordenaram ao grupo que abandonasse o veículo. Antes que a mãe pudesse desafivelar o cinto de segurança do garoto para retirá-lo, os assaltantes aceleraram. João Hélio foi arrastado por sete quilômetros. Durante a fuga, motoristas e passantes alertavam desesperadamente os criminosos por meio de gestos e sinais para o fato de que o menino estava sendo esfolado vivo. Os ladrões, entretanto, segundo relato que um deles teria depois feito à polícia, debochavam, dizendo que o que estava sendo arrastado não era uma criança, mas um mero "boneco de Judas". Após cruzar vários bairros do Rio, os assassinos acabaram abandonando o carro. O corpo de João Hélio já era uma massa amorfa, sem dedos, joelhos e cabeça.

Como não poderia deixar de ser, a libertação de um dos bandidos, após apenas três anos de medida socioeducativa (o rapaz era menor de 18 anos na época do crime), causa revolta. No que muitos consideram uma provocação, a ONG Projeto Legal, que trabalha com menores infratores, ainda requereu e por alguns dias conseguiu que o jovem fosse inscrito no Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (Ppcaam), o que lhe daria direito a uma nova identidade e auxílio material do poder público.

O tratamento que se deve dispensar a criminosos é uma daquelas questões viscerais que separam a esquerda da direita, as pessoas com inclinações liberais de seus homólogos mais conservadores. Como sempre, o que está atuando aqui são dois modos ligeiramente diferentes de colocar-se no mundo. E a razão para as diversas "Weltanschauungen" tem origem cerebral.

Não há indivíduo psiquicamente saudável que não se comova com a história de João Hélio. A fim de promover e facilitar a vida em sociedade, a evolução nos dotou com uma série de mecanismos como neurônios espelho e descargas de oxitocina que fazem com que nos identifiquemos com outros seres humanos. Ao ler a descrição do crime, automaticamente nos colocamos no lugar de seus pais. Experimentamos um lampejo de sua dor e da raiva que sentem dos assassinos. O impulso de querer ver os criminosos castigados é não apenas uma emoção genuína como também necessária para a estabilidade social. Se não tivéssemos o desejo de punir os que tentam se aproveitar de nossos esforços conjuntos, não conseguiríamos viver nem em clãs, quanto menos em cidades de milhões de habitantes.

Só que o circuito emocional da empatia, embora extremamente vívido, não é o único a atuar em nossas cacholas. Também fomos dotados de sistemas capazes de analisar atos e suas consequências e projetá-las no futuro. Ainda que muito mais frias do que a empatia, considerações racionais podem inibir nossos impulsos sociais mais primitivos e modulá-los um bocadinho. Gostemos ou não, a capacidade de refrear impulsos e emoções permitindo a interveniência do mais ponderado cálculo é a grande responsável pelo sucesso evolutivo da humanidade, que logrou transformar a natureza e assenhorar-se de todos os nichos ecológicos em que se instalou.

Evidentemente, os dois sistemas (e muitos outros que não cabe aqui enumerar) convivem lado a lado em cada indivíduo. Se fôssemos apenas instinto, não nos diferenciaríamos de outros mamíferos sociais como lêmures e babuínos. Se, alternativamente, não contássemos com emoções gregárias como a empatia, não passaríamos de sociopatas que, por não confiar no próximo, provavelmente nem teríamos descido das árvores.

Quanto cada pessoa se deixa guiar por cada qual desses circuitos independentes mas interligados é que vai definir seu posicionamento político em relação a criminosos. Os que, mesmo sem estar pessoal e diretamente envolvidos com um caso qualquer, dão mais peso às emoções e se inclinam pela punição tão dura quanto possível dos bandidos podem classificar-se como conservadores. Já os que adotam uma linha pragmática, que vê a sanção mais como uma forma de manter a coesão social do que de "fazer justiça" (na verdade, a própria noção de justiça é um conceito para lá de problemático), são o que consideramos de esquerda.

Subjaz a cada uma dessas posições uma visão mais ou menos pessimista da natureza humana. Para os direitistas, um sujeito com propensão a cometer crimes manterá essa característica por toda a sua vida. A sociedade que decide eliminá-lo através de institutos como a pena de morte está apenas exercendo seu direito de autodefesa. Já para os liberais, a natureza humana é pelo menos um pouco maleável. Embora muitos bandidos reincidam, alguns deles, ao final de suas sentenças, se tornaram bons cidadãos ou pelo menos inofensivos. De mais a mais, existe sempre a possibilidade de erro judicial, o que basta para nos acautelar contra respostas irreversíveis como a sanção capital.

Pessoalmente, me enquadro na segunda categoria. Compreendo perfeitamente os que estão agora com vontade de esganar com as próprias mãos os assassinos de João Hélio porque consigo imaginar-me no lugar dos pais do garoto. A lógica das instituições não pode, contudo, pautar-se unicamente por nossos hormônios sociais. A impessoalidade que se cobra do Estado exige que ele seja bem mais frio. O máximo que se pode fazer, como concordarão todos os que se dispuserem a fazer uma análise racional e desapaixonada, é aplicar a regra previamente acordada ("nulla poena sine lege" não haverá pena sem lei anterior que a defina). E, neste caso, a maior sanção cabível a menores de 18 anos, por mais bárbaros que tenham sido seus delitos, são três anos de medida socioeducativa.

Podemos mudar essa norma? Sim, poderíamos, no âmbito de uma nova Constituição ou de uma ampla reforma da Carta, que não ocorreria sem contestações judiciais. Embora eu não seja um desses militantes de direitos humanos que veem a preservação da maioridade penal aos 18 anos como um fim em si mesmo, tenho um certo receio de dar a primeira mexida nesse vespeiro.

Vamos supor que baixemos a idade mínima para o encarceramento para 16 anos, como muitos defendem. Seria uma questão de tempo até que um jovem de 14 ou 15 cometesse um crime sanguinário que geraria uma onda de protestos por nova redução. Logo estaríamos, como nos EUA e no Reino Unido, condenando a longas penas de prisão crianças de 10 ou 11 anos o que é sempre menos chocante no sistema de "common law" anglo-saxão do que no Direito codificado que herdamos da Europa continental.

Parece-me mais correto e honesto colocar a questão da seguinte forma: concordamos ou não com o princípio que norteia o Direito brasileiro de que jovens, por estarem em formação, merecem sanções mais brandas e com propósitos pedagógicos, na esperança, por vezes vã, de que eles se emendem? Se respondemos afirmativamente, tudo o que nos resta é definir de modo mais ou menos arbitrário a fronteira da maioridade e os limites das penas aceitar as consequências. Sempre haverá crimes abaixo da linha traçada que nos deixarão de mãos amarradas. Podemos, é verdade, recusar esse princípio. Fazê-lo nos permitiria punir exemplarmente adolescentes assassinos, aplacando nossa sede de vingança. A contrapartida, porém, é que estaríamos nos colocando em alguma medida contra aqueles mesmos instintos gregários que fazem com que nos importemos com a educação dos jovens.

Um bom sistema penal é aquele que consegue, sempre seguindo as exigências da manutenção do Estado de Direito, dar uma resposta que satisfaça parcialmente o desejo de "fazer justiça" da sociedade. No Brasil, infelizmente, não estamos cumprindo minimamente nenhum dos dois quesitos.

PS - Tiro a próxima semana para respirar ares soteropolitanos. Retomo a coluna no próximo dia 11

Hélio Schwartsman é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

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