Pensata

Hélio Schwartsman

11/03/2010

O lugar da liberdade

De forma talvez um pouco temerária, reúno hoje dois assuntos aparentemente desconexos: a suspensão, pelo Conar (Conselho de Autorregulamentação Publicitária), da propaganda da cerveja Devassa, estrelada por Paris Hilton, e a condenação, pela Justiça mineira, do casal que resolveu tirar seus filhos da escola a fim de ensiná-los em casa. À primeira vista, seria fácil qualificar ambos os eventos como atentatórios às liberdades. Num certo sentido, até o são. E, já me antecipando, aviso que não compactuo com nenhuma das duas decisões, mas por razões inteiramente diversas, senão contraditórias.

Comecemos pelo caso dos Nunes. Há quatro anos eles retiraram seus dois filhos adolescentes, hoje com 15 e 16 anos, do colégio que frequentavam com o objetivo de educá-los em casa. Diante disso, na semana passada um juiz os condenou em primeira instância a pena simbólica de multa por abandono intelectual. Louvo a sapiência e sensibilidade do magistrado que não os mandou para a cadeia, como a redação do artigo 246 do Código Penal teria permitido, mas a decisão é sob qualquer ângulo ridícula. É verdade que o artigo 55 do Estatuto da Criança e do Adolescente, o popular ECA, determina a obrigatoriedade de os pais matricularem seus filhos na rede regular de ensino, mas não estabelece nenhuma pena para quem deixa de fazê-lo. Já o Código Penal, que traz sanções, define o crime como "deixar, sem justa causa, de prover à instrução primária de filho em idade escolar". Ora, os Nunes, embora o tenham feito de forma doméstica, não se furtaram a ensinar os rebentos, como o demonstrou teste aplicado nos garotos pela Secretaria da Educação de Minas Gerais, no qual eles foram aprovados. (Diga-se, "en passant", que boa parte dos alunos matriculados nas escolas oficiais não obtém o mesmo sucesso). Ou seja, pela letra da lei, não se configura o crime de abandono intelectual, donde a multa, ainda que simbólica, é injustificável --"in dubio pro reo".

Não estou, com essa defesa dos Nunes, afirmando que aprove o "homeschooling" (ensino em casa). A meu ver, a função da escola não é apenas transmitir conteúdos aos alunos, mas também ensiná-los a conviver civilizadamente uns com os outros, respeitando diferenças e aprendendo com elas. Eu diria até que, no Brasil, onde a maioria dos estabelecimentos falha miseravelmente na tarefa de ampliar o conhecimento, o elemento de convivência ganha importância relativa. E isso é muito difícil de fazer em casa.

De toda maneira, não vejo nenhum motivo constitucional ou moral para impedir pais que queiram optar pelo "homeschooling" de fazê-lo. Afinal, nossas leis já lhes facultam infligir aos herdeiros coisas muito piores, como tratá-los com homeopatia e levá-los à igreja antes de terem idade para decidir se querem ou não frequentar cultos.

Quanto a Paris Hilton, também a decisão do Conar me parece grotesca. Para começar, já assisti a dezenas de comerciais de cerveja com linguagem e conteúdo muito semelhantes ao vetado que passaram incólumes pelo órgão. Fica difícil não achar que tenha influído no resultado da deliberação o fato de o pedido para a exclusão ter partido da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres --ou seja, do governo. E, conhecendo o governo que temos, fica difícil não considerar que tenha pesado na história o fato de o comercial ser protagonizado por Paris Hilton, segundo alguns timoneiros, o ícone mesmo do "estrume cultural" ianque.

Seja como for, ao contrário do que ocorreu em Minas, não acho que operem aqui violações a liberdades constitucionais. Antes de mais nada trata-se de uma decisão de órgão "interna corporis" dos publicitários. Se os proprietários da empresa que encomendou e pagou pela peça quiserem ignorar o Conar poderiam em teoria fazê-lo e continuar exibindo o reclame. No mais, minha sensação é a de que o buraco é bem mais embaixo. Não é a exploração da imagem da mulher como objeto sexual --"framing" de três de cada quatro mensagens publicitárias-- que me incomoda, mas sim o fato de cervejarias poderem anunciar sem nenhum tipo de restrição o seu produto, que é basicamente uma droga psicoativa com acentuada capacidade para provocar dependência.

Chegamos aqui ao busílis desta coluna. Antes que me acusem de utilizar pesos diferentes para a mesma medida, permito-me uma digressão.

A pergunta pertinente aqui é: em que nível deve materializar-se a liberdade? Ela deve aplicar-se a pessoas, grupos sociais vulneráveis, empresas, instituições, classes sociais ou combinações desses elementos? A questão é evidentemente controversa. De minha parte, afirmo sem hesitar muito que a única resposta que faz algum sentido é o indivíduo. E a razão para isso é muito simples. A liberdade como a maioria de nós a entende não é um fim em si mesmo. Ela é antes de tudo um meio em grande medida necessário para que possamos buscar aquilo que se convencionou chamar de felicidade, este sim um conceito que pode reclamar para si o estatuto de finalidade ou meta da existência. Não, não estou tentando universalizar minha visão de mundo materialista e ateia. Não estou aqui fazendo muito mais do que repetir o bom e velho Aristóteles ("Ética a Nicômaco", pár. 21), autor que inspirou três de cada quatro doutores da Igreja.

E não é necessário muito esforço mental para constatar que apenas pessoas, por terem a capacidade biológica de experimentar prazer, dor e antecipar as sensações a eles associadas, podem ser titulares de liberdades e, por conseguinte, dos mecanismos legais que visam a assegurá-las. É claro que eu posso evocar noções como "liberdade de expressão comercial". Deve-se, contudo, ter em mente que elas surgem apenas por analogia, como concretizações da metáfora que equipara instituições a pessoas. A própria terminologia legal reforça a identificação, quando prevê a existência de "pessoas jurídicas". E, vale mencioná-lo, uma série de trabalhos recentes em psicologia cognitiva vem apontando um papel cada vez mais central da metáfora como matéria-prima do pensamento.

Está aí um bom motivo para nos acautelarmos contra analogias que pareçam muito irresistíveis. Para um conceito como "liberdade empresarial" parar em pé, seria necessário que a ele correspondesse um outro de "felicidade empresarial", o que não me parece fazer muito sentido. Até posso vislumbrar radiantes acionistas da Telebrás e um ainda mais letífico CEO, mas a felicidade, se é que existe de fato, só pode ocorrer no nível do indivíduo, jamais da instituição.

Na verdade, quando lançamos bandeiras como "liberdade sindical" e "universidade livre", estamos apenas nos valendo de um truque psicológico barato mas extremamente eficaz para recrutar para nossa causa militantes entusiasmados, que, frequentemente sem se dar conta, equiparam em suas redes neurais a palavra de ordem com a manutenção de sua própria liberdade.

Não estou com essas considerações afirmando que o governo ou qualquer outro agente estejam legitimados a baixar a seu bel-prazer normas que interfiram no funcionamento de empresas, sindicatos e universidades. Existem milhares de razões para que não o façam. Por vezes, elas têm a ver com a preservação dos fundamentos do Estado de Direito, mas não necessariamente. O liberticídio ocorreria, por exemplo, na hipótese de uma norma que impusesse censura a órgãos de imprensa ou impedisse universidades de divulgar os resultados de suas pesquisas. A violação não estaria no cerceamento às ações da organização propriamente dita, mas no fato de a medida implicar que cidadãos se veriam privados de seu direito à informação e à livre circulação de ideias.

Só o que estou tentando dizer é que a analogia entre "pessoa física" e "pessoa jurídica" não pode ser levada a ferro e fogo. Da mesma forma que uma empresa não pode ser torturada, uma lei que restrinja a publicidade de remédios ou bebidas alcoólicas por companhias não pode ser vista como uma ameaça à liberdade de expressão individual.

Assim, voltando a nossos casos, a decisão da Justiça mineira viola a liberdade que, a meu ver, os pais devem ter de educar seus filhos da forma que lhes parecer mais adequada, ainda que muitos de nós tenhamos motivos para considerar tola. Já o veto do Conar à peça publicitária da cerveja Devassa, embora igualmente tola, não chega a ferir as garantias que o Estado liberal moderno precisa oferecer a seus cidadãos.

A liberdade de expressão é uma garantia a indivíduos. Basicamente, um autor deve ter o direito de dizer o que bem entenda. Pode fazer seus personagens se prostituírem, se drogarem e participarem de orgias pedófilas que terminem em assassinatos. Daí não decorre que empresas possam promover anúncios conclamando todos a fazer o mesmo com o intuito de vender bebidas, camisinhas, remédios controlados e revólveres. A lógica que fundamenta a diferença é simples: a liberdade do autor se justifica como um meio para que ele e os que pensam como ele possam realizar-se como indivíduos, algo que não está ao alcance de empresas fazer.

Hélio Schwartsman é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

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