Pensata

Hélio Schwartsman

22/04/2010

Inteligência divina

Como ainda estou recebendo e-mails por conta da coluna "Teologia selvagem", publicada duas semanas atrás, acho que vale a pena voltar uma vez mais ao tema religião e inteligência.

Antes de mais nada, esclareço que nada tenho contra o uso adequado da religião. Ela pode ser fonte legítima de conforto e de prazer para os apreciadores, a exemplo da poesia e do sexo consensual entre pessoas crescidas (é bom frisar o "consensual" e o "pessoas crescidas").

Também reforço que não pretendi ofender ninguém com as passagens mais veementes do texto anterior. Indivíduos de todos os credos e cores têm o meu respeito, mas só indivíduos, não seus pensamentos. Uma ideia tola é tola não importa quem a tenha proferido. Num passado não tão longínquo, a noção de que pecadores deveriam ser queimados vivos para salvar suas almas imortais pareceu respeitável a boa parte do Ocidente. Felizmente, a tese foi contestada e as ações que engendrou são hoje classificadas como mais um crime cometido em nome das religiões. Temos, portanto, excelentes motivos para questionar todas as teorias, doutrinas e sistemas que se nos apresentam. Nenhum ideia é sagrada demais para ficar a abrigo do escrutínio crítico.

Assim, voltando a Adão e Eva, está ainda dentro do que eu chamei de "uso adequado da religião" interpretar as primeiras páginas do Gênesis como uma alegoria, um modo simbólico de explicar a origem do homem e sua proximidade com um suposto criador. Já advogar pela literalidade do mito é mais problemático. Afirmar, como o fizeram 25% dos brasileiros, que o homem foi criado por Deus há menos de dez mil anos significa emitir um juízo bastante concreto e verificável sobre o mundo. Ou o planeta tem mais ou tem menos de dez mil anos. Aqui é um ou outro. Se estamos todos falando a mesma língua (e eu espero que estejamos), não há entrelinhas para acomodar o alegórico nem espaço para "opiniões diferentes".

E existem inúmeras evidências de que a Terra tem um pouco mais do que dez mil anos. As provas estão por todos os lados e são obtidas por diferentes métodos. Podemos caminhar sobre elas no Canadá (as rochas da baía de Hudson, as mais antigas já encontradas, têm entre 3,8 e 4,3 bilhões de anos) ou entrar em qualquer museu paleontológico e dar uma olhadinha nos fósseis, que terão entre 3,5 bilhões de anos e alguns milhares de circunvoluções solares. Prefere lugares mais isolados? Cave um buraco nas geleiras antárticas ou groenlandesas e também poderá encontrar gelo bastante antigo. Já chegamos a 800 mil anos anos. Na verdade, podemos até mesmo temperar nossa comida com sais antigos. O do Himalaia, vendido em lojas gourmet, tem 250 milhões de anos. Sua opção é por mais intimidade? Os átomos de hidrogênio presentes em nosso corpo têm a idade do universo, isto é, um pouquinho menos de 14 bilhões de anos. Átomos mais pesados podem ser mais novos, pois precisaram esperar as estrelas se formarem para ser forjados em suas fornalhas nucleares.

E não precisamos nos restringir à idade do planeta ou do universo. Também sabemos, para além de qualquer dúvida razoável, que o homem não veio do barro nem a mulher de uma costela, mas que evoluíram ambos a partir de primatas mais antigos, os quais derivaram de mamíferos ainda mais velhos que, por sua vez, se desenvolveram a partir de vertebrados terrestres que... Não é muito exato dizer que somos descendentes dos macacos (embora os primatas mais antigos provavelmente se parecessem mais com macacos do que com homens), mas não há dúvida nenhuma de que somos "primos" (partilhamos ancestrais comuns) não apenas de chimpanzés e gorilas como de todos os seres vivos do planeta, incluindo amebas e bactérias.

É claro que ninguém é obrigado a acreditar nas várias teorias científicas que sustentam os métodos de datação nem na síntese neodarwinista. Existem sempre boas razões para desconfiar pelo menos um pouquinho do que os cientistas afirmam. Eles próprios são os primeiros a colocar em dúvida os achados de seus rivais. Só que esse mesmo ceticismo deveria ser aplicado também às Escrituras. Ou, inversamente, se nosso religioso cético para com as coisas da ciência insistir em manter suas convicções e quiser ser coerente, deveria pensar duas vezes antes de acionar seu forno de micro-ondas (são elas que nos dizem que o Universo tem 14 bilhões de anos) ou despachar um e-mail via internet. Mal e mal, essas tecnologias também são fruto de uma série de teorias que ele rejeita.

E, já me antecipando às críticas, digo que crer na ciência não é o mesmo que crer numa religião. Embora cientistas possam individualmente portar-se como o pior Torquemada, o método científico tem uma especificidade que não é partilhada por nenhum sistema de crenças religiosas. Nas ciências empíricas, todas as "verdades" são necessariamente provisórias, devendo ser revertidas tão logo surjam evidências convincentes em contrário. O principal "dogma" da ciência é que não existem dogmas.

Na religião, cada sacerdote cuida de espalhar a Verdade como definida pelo conjunto de dogmas constitutivos de sua religião, que não devem ser contestados. Já na ciência, idealmente, cada cientista trabalharia para falsear as "verdades" que lhe foram ensinadas por seus professores, com o intuito de reforçá-las (caso os experimentos bolados para desafiá-las fracassem) ou substituí-las por novas hipóteses e teorias que expliquem melhor a realidade.

Bem, voltando à nossa boa e velha metafísica, examinemos agora as formas "adequadas" de uso da religião. Chamei-as de "adequadas" porque pelo menos não nos lançam em contradição direta com o mundo, pois os seguidores dessa corrente de pensamento têm o bom senso de abster-se de fazer afirmações verificáveis sobre Deus. Mas daí não se segue que sejam exatas ou verdadeiras. Elas apenas criam providenciais interstícios lógicos que evitam toda espécie de juízo que possa ser cabalmente desmentido como no caso da idade da Terra.

Uma vez que é logicamente impossível demonstrar a inexistência de um ente supremo, fica relativamente fácil "salvar" Deus. Mesmo eu, ateu contumaz, não nego que pode haver uma singularidade na origem de nosso Universo (embora existam teorias rivais que a evitam). O religioso já vê aí afoitamente um Criador. Não tenho nada a opor se alguém quiser deificar o Big Bang. Aqui, é apenas uma etiqueta onomástica que estamos trocando. Com algum esforço, chegaríamos talvez a uma concepção deísta: um Demiurgo que fez o Universo com todas as suas leis e depois retirou-se, para gozar um shabbat de 14 bilhões de anos.

Não compro essa tese, mas um ente assim, vale frisá-lo, está a anos-luz de distância do Deus pessoal das religiões monoteístas, uma inteligência infinita que criou o Universo e se interessa pelo destino individual de cada um dos 7 bilhões de terrestres, aos quais conhece desde criancinhas e de quem exige que não cometam pecados, um conceito vago que varia de credo para credo. Por vezes, a mesma ação que leva ao inferno segundo uma fé garante o passagem para o paraíso de acordo com outra. Se acreditar num ser assim é racional, precisamos redefinir o termo...

Alguns leitores me perguntaram por que sempre falo de religião. Já que não creio em Deus, dizem, eu deveria calar sobre o assunto. Minhas reiteradas recaídas no tema indicariam uma vontade secreta de converter-me. "Non sequitur", para falar latim claro. Meu interesse pela matéria tem caráter sobretudo científico-antropológico. A religião é um fenômeno interessantíssimo. É a única matriz de pensamentos que leva pessoas inteligentes e normalmente racionais a agir como criancinhas à espera de Papai Noel na véspera do Natal.

De minha parte, não tenho a pretensão nem o desejo de convencer ninguém a abandonar o seio de sua religião. Imagino que muitos estejam perfeitamente felizes onde estão. Tampouco considero todos os fiéis imbecis apenas por acreditarem. Podem até sê-lo, mas isso depende de como externam ou tentam justificar suas crenças.

Ao que tudo indica, a fé religiosa tem base neurológica. Ela faria parte de um cérebro espiritual, uma rede de ativações neuronais que é independente das conexões do cérebro racional. Pedir para a alguém que abandone suas convicções religiosas ou espirituais não faria muito sentido. "Mutatis mutandis", seria como cobrar de uma pessoa que não sinta emoções como raiva, nojo etc. É algo que não está em seu poder fazer.

Poder-se-ia ver aí mais um argumento para eu desistir de vez de falar de religião. Ocorre que os cérebros racional e espiritual, embora independentes, podem intercomunicar-se. Eles, afinal, fazem parte da mesma massa encefálica. A razão por si só não vai me fazer parar de sentir medo, mas pode perfeitamente contribuir para modular esse tipo de sensação. Não vamos deixar de temer tudo, mas, com o recurso a terapias de extinção de fobia ou mesmo a drogas, podemos nos livrar de certos medos irracionais.

De modo análogo, o exame crítico das religiões pode servir para que as pessoas percebam que sua espiritualidade é algo mais genérico do que os rituais e condicionamentos de uma determinada igreja. Embora a busca pela transcendência esteja se expressando numa religião em particular, as especificidades deste ou daquele credo --e as condenações que lançam uns aos outros-- não são tão importantes. Pode parecer meio bobo até, mas é um ponto fundamental para que se construa uma religiosidade mais tolerante.

Hélio Schwartsman é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

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