Pensata

Hélio Schwartsman

06/05/2010

Monstros, desnaturados e tarados

Por sete votos a dois, o Supremo Tribunal Federal (STF) negou o pedido feito pela OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) para que a Lei de Anistia (nº 6683/79) fosse revista. A associação de classe dos causídicos queria licença para processar os agentes do Estado que, durante a ditadura militar, tenham cometido crime de tortura.

O resultado não me surpreende. Como eu já escrevera aqui antes, mesmo que o Supremo estabelecesse que a anistia não protegeu torturadores, tais delitos estariam prescritos pelo menos desde 1999. E tentar fazer retroagir contra o acusado a regra que lhe é menos benéfica (a imprescritibilidade da tortura) parece-me pelo menos complicado. Envolveria ultrapassar alguns princípios que sempre estiveram na mais alta conta dos que defendemos os chamados direitos humanos. O fato de eu não me surpreender não significa que eu deixe de lamentar. O Brasil perde mais uma chance de acertar as contas com seu passado.

Na minha avaliação, houve um erro de estratégia da OAB. Essa não era uma batalha para ser travada na esfera penal e nem mesmo no âmbito dos tribunais. A essa altura, é quase irrelevante se os responsáveis pelos subterrâneos da repressão, hoje em sua maioria já velhinhos, terminarão ou não seus dias na cadeia. O que ainda importa para o país é passar institucionalmente a limpo os crimes cometidos por representantes do Estado durante os anos de exceção. Mesmo que os combatentes de esquerda se acreditassem legitimados por uma "moral superior" até a matar para lograr seus objetivos, eles eram, sob o prisma da lei da época, criminosos comuns protegidos pelas garantias fundamentais declaradas nas Constituições de 1946 e, depois, de 1967, nenhuma das quais autoriza a tortura ou o assassinato.

No mais, existem famílias que ainda não sabem o que ocorreu com seus parentes desaparecidos. E, não menos importante, a população como um todo não pode ser privada do que podemos chamar de direito à verdade histórica.

Esses objetivos teriam sido mais bem perseguidos no contexto de uma comissão "ad hoc" sem caráter punitivo, mas com poderes de polícia para investigar, intimar etc. Ele ficaria encarregada, não de sentenciar réus nem de arbitrar indenizações (nisso os governos pós-ditadura foram céleres e pródigos), mas de apurar com o máximo de detalhe possível cada caso ainda obscuro e contar o que aconteceu, descobrindo de preferência quem torturou, quem ordenou.

Antes que comecem a me escrever perguntando por que não exijo o mesmo tratamento para os "terroristas", esclareço que o problema aqui não é de ideologia, mas de fatos. Até onde se sabe, os grupos que combatiam a ditadura não sumiram com corpos de militares nem os enterraram clandestinamente. Todas as ações homicidas por eles perpetradas já foram descritas e estão bem documentadas. Simplesmente não há muito o que apurar, já do outro "lado" ainda restam pelo menos uma centena de casos não esclarecidos. Mas é claro que, se alguém levantar uma história que ainda careça de investigação, ela deveria ser incluída na pauta do comitê.

Por essas e outras, acho que, ao levar o caso para o Supremo e ver seu pedido negado, a OAB apenas tornou um pouco mais remota a chance de estabelecer uma Comissão da Verdade, como queria o ministro Paulo Vanucchi. Infelizmente, a iniciativa do titular da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência, por conta de muitos e variados erros de estratégia, foi bombardeada por uma formidável reação conservadora e, ao que tudo indica, soçobrou.

Não era, contudo, por sendas político-históricas que eu pretendia embrenhar-me hoje. No julgamento no Supremo, chamou-me atenção uma frase do ministro Ayres Britto sobre o torturador: "É um monstro, um desnaturado, um tarado".

Será?

Evidentemente, coloco a tortura entre os delitos graves que o poder público precisa empenhar-se de verdade em coibir, mas tendo a desconfiar um pouco de linhas morais pintadas com tintas de cores tão berrantes como as escolhidas por Ayres Britto.

(Infelizmente, espancar suspeitos de crimes ordinários até que eles "entreguem o serviço" continua sendo um dos principais "métodos de investigação" de nossas polícias e, embora essa não seja uma política de Estado, creio que a prática é tacitamente tolerada por autoridades, porque, para eliminá-la, seria preciso reformular inteiramente as corporações policiais, o que exigiria enorme investimento de recursos e energias).

Voltando ao torturador de Britto, minha argumentação é principalmente de ordem psicológica: será que não estamos todos muito mais próximos de nos convertermos em "tarados" do que gostaríamos de imaginar? Pelo menos um experimento sugere que sim.

Ele teve lugar na Universidade Stanford (Califórnia) em 1971. Um grupo de pesquisadores liderado por Philip Zimbardo estava interessado em descobrir até que ponto traços de personalidade de prisioneiros e guardas explicavam situações abusivas nas cadeias. Para tanto, decidiram criar um simulacro de xadrez no porão do Jordan Hall (sede do Departamento de Psicologia), em Stanford, e pô-lo para funcionar.

Eles recrutaram 75 voluntários dos quais selecionaram os 24 que acreditavam estar em melhores condições de saúde física e mental. Era basicamente o público universitário da época: brancos de classe média dispostos a faturar uns cobres por participar de estudos acadêmicos. Num sorteio, metade do grupo ficou com o papel de guarda, e a outra, com o de prisioneiros.

Para tornar as coisas realistas, as vítimas foram capturadas em suas próprias casas com a ajuda da polícia de Palo Alto, "fichadas" na delegacia local sob a acusação de assalto a mão armada e levadas para o Jordan Hall. Lá, receberam um uniforme e um número, pelo qual passaram a ser chamadas.

Quanto aos guardas, eles receberam vestes militares, óculos escuros (para evitar contatos olho no olho) e um cassetete (para marcar seu status social). Na véspera, Zimbardo, que desempenharia as funções de superintendente da cadeia, se reuniu com os guardiões e lhes explicou que eles poderiam chatear e até assustar os presos, mas jamais usar força física contra eles.

Rapidamente as coisas saíram de controle. Os guardas começaram a mostrar-se cada vez mais cruéis para com os presos, que, depois de uma tímida tentativa de rebelar-se, foram aceitando docilmente as humilhações a eles impostas.

Eles eram forçados a contar indefinidamente e a fazer exercícios como sanções disciplinares. Logo, as condições sanitárias se deterioraram (os guardas não permitiam que os prisioneiros dessem a descarga). O próprio Zimbardo, escreveu depois, se deixou absorver pela situação e pelo papel de superintendente. Foi só depois que sua namorada, Christina Maslach, visitou o local e constatou que limites éticos haviam sido rompidos, que o psicólogo começou a questionar a moralidade da situação. No sexto dia, o experimento, concebido para durar duas semanas, foi interrompido (e sob os protestos dos guardas, que pareciam estar curtindo o poder).

A moral da história é que o comportamento dos participantes foi em larga medida ditado pela situação em que se encontravam, com papéis que lhe foram institucionalmente atribuídos, e não apenas por traços de sua personalidade. Um pouco de desorientação e despersonalização faz com que as próprias vítimas aceitem mansamente seu destino.

O experimento da prisão de Stanford, como ficou conhecido, sofreu fortes críticas éticas e metodológicas. É certamente precipitado generalizar suas conclusões. Ele é, entretanto, apoiado por toda uma família de testes mais éticos e mais facilmente reprodutíveis, como o experimento Milgram, no qual voluntários comuns, sem grandes dramas de consciência, desferem em outros seres humanos choques que acreditam (falsamente) ser capazes de deixar graves sequelas.

Apesar das críticas, muitas das quais são procedentes, esses estudos servem pelo menos para nos lembrar que nossa rigidez moral e a própria civilização podem ser apenas um verniz vulnerável à corrosão provocada por situações adversas ou por ideologias. É um filme a que periodicamente assistimos, na Alemanha, na Iugoslávia ou em Ruanda. Hannah Arendt chamou-o de "banalidade do mal".

Hélio Schwartsman é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

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