Pensata

Hélio Schwartsman

13/05/2010

Universo, uma história de erros

Com algum atraso, comento o livro "Criação Imperfeita", do físico Marcelo Gleiser, lançado em março último. Gostei bastante. É uma obra de receita improvável: junte uma competente revisão da física de partículas com um panorama dos últimos trabalhos em cosmologia e salpique um pouco do que já se publicou sobre a origem da vida; acrescente à mistura um tom memorialista e extraia deliciosas conclusões epistemológicas, que, se não questionam a base da ciência ocidental, pelo menos lançam novos "insights" sobre as motivações dos que a escreveram e o tipo de busca em que se enredaram.

Como sou menos do que um aprendiz em física e biologia, não me aventuro muito nessa seara. Só o que posso dizer é que Gleiser, como bom professor --atualmente, ele dá aulas no Dartmouth College, em New Hampshire (EUA)--, é quase claro em suas explicações. Ao ler seus esclarecimentos sobre bárions, léptons e supercordas, ficamos com a sensação, certamente enganosa, de ter compreendido tudo.

Deixemos, entretanto, os quarks e bósons para os físicos. O que me interessa discutir aqui é a filosofia da ciência por trás do livro. A tese central de Gleiser é que, desde os primeiros filósofos gregos, sempre foi a busca por princípios de unificação e simetria que inspirou os cientistas. Desvendar o mundo equivalia a descobrir a ordem matemática por trás das coisas. "A matemática é o alfabeto no qual Deus escreveu o universo", disse certa vez Galileu Galilei. E o astrônomo de Pisa não foi o primeiro nem o último a tentar ler o divino na ordem natural. A tradição, com efeito, remonta aos gregos --especialmente os pitagóricos e a Platão--, mas prosperou, ecoando até mesmo em Einstein, para quem "o Senhor não joga dados".

(Diga-se, "en passant", que, embora muitos gostem de citar Einstein como exemplo de cientista religioso, este não é o caso. É certo que ele adorava metáforas envolvendo a imagem de Deus, mas, na verdade, era um judeu ateu de boa cepa. Numa carta

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ciencia/fe1505200804.htm

escrita em 1954 --ou seja, um ano antes de sua morte-- ao filósofo alemão Eric Gutkind, o físico não deixa margem a dúvidas: "A palavra Deus para mim nada mais é que expressão e produto da fraqueza humana, a Bíblia é uma coleção de lendas honradas, mas ainda assim primitivas, que são bastante infantis. Nenhuma interpretação, não importa quão sutil, pode mudar isso").

De volta a Gleiser, o autor sustenta que é em virtude desse amor pela simetria, ao qual chama de "encantamento jônico", que a física persegue até hoje uma teoria que unifique todas as quatro forças da natureza --eletromagnetismo, gravidade, e as forças nucleares forte e fraca. Só que é perfeitamente possível que essa supersimetria pela qual ansiamos com tanto ardor não exista. E, se é precipitado desde já abrir mão de buscá-la, é ainda mais errado erigir essa simetria em dogma.

E aí Gleiser se propõe a contar uma história um pouco diferente. Segundo ele, é possível interpretar a história do universo como uma história de assimetrias. Foi um ligeiro excesso das partículas de matéria sobre as de antimatéria nos primeiros instantes após o Big Bang --um desequilíbrio-- que tornou possível a existência de galáxias e estrelas. De modo análogo, ao que tudo indica, pequenas flutuações randômicas (térmicas, de radiação ou sabe-se lá o quê) --um desequilíbrio-- estão na origem das moléculas orgânicas das quais somos constituídos. Também as mutações, que permitiram a transformação de átomos de carbono ligados a meia dúzia de elementos químicos baratos em organismos complexos, são fruto de erros aleatórios de replicação.

Evidentemente, Gleiser não está propondo que viremos do avesso a forma de fazer ciência. Para sermos rigorosos, ele não está nem mesmo sugerindo que a narrativa dos desequilíbrios seja superior a uma outra, que enfatize as simetrias. (Mal e mal, foi a busca pela harmonia que nos legou todo o conhecimento que acumulamos até agora). No fundo, a diferença entre essas duas narrativas é de ordem estética. O que ele diz, e me parece ao mesmo tempo extremamente sensato e humilde, é que a ciência é uma busca sem fim. Não existem nem jamais existirão teorias finais. Nunca poderemos conhecer tudo, pois existem limitações para o que podemos medir. E, no que se torna um "Leitmotiv" ao longo do livro, só conhecemos o que podemos medir.

Com isso, a ciência fica como que condenada a ser no máximo a melhor explicação que uma determinada época pode dar ao conjunto de observações (mensurações) com as quais lida. Daí não decorre, evidentemente, que a especulação deva ser banida da ciência. É preciso porém que, em algum momento, as especulações encontrem amparo na experiência, ou o discurso deixa de ser científico e se torna apenas metafísico. Os limites, é claro, são tudo menos definidos. Uma boa teoria pode surgir décadas antes de que sejam produzidos os equipamentos capazes de testá-la. Nesse interstício, ela não deixa de ser uma hipótese científica. Por outro lado, se a cada não verificação de um fenômeno previsto pela teoria, os físicos vão ajustando os parâmetros para procurar um pouquinho mais longe e a teoria vai sendo "esticada". Ela não chega a ser falseada, mas talvez seja o caso de acionar o sinal amarelo. Para Gleiser, é mais ou menos esse o cenário da física de partículas, que vai exigindo aceleradores de energias cada vez mais altas. É hora de considerar a possibilidade de certas partículas conjecturadas pelo nosso desejo de simetria não existirem.

O tom memorialista de "Criação" dá um bom tempero, pois Gleiser conta como se deu sua transformação de apaixonado defensor de teorias unificadas em cético desse tipo de narrativa. Evidentemente a trajetória do autor não constitui prova de nada, mas é inegável que confere sabor à obra.

E, por falar em sabor, vale destacar uma gostosa ironia. Gleiser, que é um dos cientistas que criticam o radicalismo ateu de Richard Dawkins, acaba, ainda que sem o alarde de seu colega inglês, desferindo mais um formidável golpe contra Deus. Na narrativa das assimetrias que ele esboça, já não restaria a Deus nem mesmo o papel de Grande Geômetra ou de Arquiteto do Universo. O universo e a vida são o resultado de uma cadeia de erros e imperfeições. Se a matemática é o alfabeto divino, Deus é disléxico (desculpem, não resisti à piada).

Hélio Schwartsman é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

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