Pensata

João Pereira Coutinho

29/10/2007

Quem é o cão?

da Folha Online

É uma bela história: Guillermo Vargas acordou certo dia deprimido com a fome no mundo. Guillermo é artista e um artista, por definição, não faz um sanduíche e alivia seu sofrimento como qualquer mortal. Um artista denuncia as injustiças do mundo, de preferência com gesto "impensável" e "radical".

Guillermo decidiu: resgatar um cão das ruas da Nicarágua, enfiá-lo numa galeria de arte, amarrá-lo com uma corda à parede e esperar para ver. Não é difícil imaginar o que aconteceu: sem comida e sem água, o bicho morreu. Intencionalmente? A diretora da galeria, Juanita Bermúdez, diz que não. Uma petição on-line contra Guillermo diz que sim. E Guillermo prefere não dizer nada. Prefere contra-atacar a hipocrisia das pessoas, que se comovem com um cão famélico numa galeria de arte mas ignoram os bichos, e sobretudo os humanos, que vagueiam pelas cidades.

A notícia saltou para as primeiras páginas e as discussões dividiram-se em dois campos. O primeiro discute a arte de Guillermo, decidindo se a tortura de um cão é um gesto "artístico" legítimo. O segundo defende o próprio cão, em nome dos "direitos dos animais" que Guillermo teria grosseiramente violado.

Eu respeito os eruditos que discutem a "arte" e os "direitos". Mas gostaria de regressar ao próprio artista, que não ficou apenas pela denúncia da hipocrisia humana perante a fome. Nas sábias palavras de Guillermo, as pessoas contemplaram o sofrimento do cão mas ninguém decidiu libertá-lo da galeria onde estava amarrado; e, mais ainda, ninguém chamou a polícia.

Nem mais. A palavra central de toda essa história é a palavra "polícia". Não vale a pena discutir a "arte" de Guillermo, porque a discussão pressupõe levar a sério a psicopatia de terceiros. E os "direitos dos animais" nunca me convenceram. Razão simples: os animais não têm direitos; a capacidade para articular e defender "direitos" é uma prerrogativa racional e humana, que brota da nossa humana dignidade.

Mas se os animais não têm direitos, isso não significa que os homens não têm deveres para com eles. A começar pelo dever de não os abandonar ou maltratar, o que seria uma degradação da nossa própria superioridade enquanto humanos. Dito de outra forma: se os homens não respeitam os seus deveres, eles também não merecem os seus direitos. Quando ignoramos o dever de não torturar ou não matar, perdemos também o direito de não sermos julgados ou presos.

O lugar de Guillermo Vargas e da galerista Juanita Bermúdez não é nos cadernos de cultura; é na delegacia, no tribunal e, quem sabe, na cadeia. Ou, para sermos mais específicos, na jaula que ambos merecem. Matar um cão por capricho "artístico" não é uma violação dos direitos do cão; é uma violação dos deveres do homem. É uma particular forma de desumanidade que coloca qualquer ser humano ao nível de uma besta.

João Pereira Coutinho é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Record). Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.

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