Pensata

João Pereira Coutinho

12/11/2007

O rei e o bobo

As coisas são mais simples do que parecem. Ou mais complicadas. Decidam vocês. Ao longo da vida, li abundantemente sobre Churchill e o papel do estadista inglês na Segunda Guerra Mundial. Mas nenhum livro do mundo pode suplantar a experiência pessoal de visitar a casa onde Churchill nasceu e cresceu. "Casa", aqui, é provocação: Churchill nasceu em Blenheim, um palácio gigantesco, como não existe nenhum em Portugal, a alguns quilômetros da cidade universitária de Oxford.

Certo dia, decidi visitar a "casa" do homem e, confrontado com a desmesura do espetáculo, entendi a personagem. Churchill era um aristocrata e nenhum aristocrata poderia permitir que a Europa fosse conquistada por um reles soldado austríaco, de bigode ridículo e maneiras provincianas. A observação não é politicamente correta, eu sei. Mas as coisas são como são.

Sim, na Segunda Guerra era necessário salvar a Inglaterra e a Europa de uma tirania inumana. Mas quando lemos os discursos de Churchill contra Hitler, discursos escritos ainda durante a década de 1930, é impossível, depois de conhecer o berço, não ouvir a indignação de um aristocrata inglês, amante da liberdade e feroz opositor do centralismo tirânico, sobretudo de um centralismo tirânico vindo diretamente da criadagem.

E não excluo que, nos seus momentos mais pessoais, o velho Winston até imaginasse o boçal Adolfo, entrando pelos salões de Blenheim adentro, com suas botas enlameadas e na companhia de gangsters tão boçais quanto ele. Impossível não sentir um arrepio de horror pela espinha abaixo. Churchill é o exemplo supremo de como o preconceito de classe, às vezes, é uma garantia de salvação democrática.

A observação não é apenas válida para Churchill. Talvez seja válida para a monarquia como forma de governo. Não sou monárquico, confesso, e não sou monárquico pela razão mais simples: a democracia é o pior regime que existe, com a exceção de todos os outros (Churchill, "dixit").

Mas também confesso que a monarquia pode ter as suas vantagens: ao não ser democraticamente escolhido pelo povo, o rei não sente a pressão popular e a vontade prosaica de conquistar o poder. E pode assim colocar os interesses do país acima dos interesses de um partido.

A posição não lhe permite apenas ver mais longe, com um sentido de história e de continuidade que falta aos seus contemporâneos. Permite que o rei não se sinta obrigado a respeitar o pensamento politicamente correto que, como um vírus, subverte a própria noção de civilidade. Porque só devemos ser gentis com quem merece a gentileza.

E Juan Carlos, rei de Espanha, não foi gentil com Hugo Chávez. Mas por que motivo deveria ter sido? Na 17ª Cúpula Ibero-Americana de Chefes de Estado e de Governo, em Santiago do Chile, o primitivo Chávez entendeu ser seu dever acusar José Maria Aznar, ex-premiê eleito pelos espanhóis, de ser um "fascista". Vindo de Chávez, um herdeiro espiritual de Fidel, a coisa até poderia soar a elogio. Não soou. E depois de Zapatero, atual premiê, ter tentado defender a honra do convento com punhos de renda, o rei disparou um "por que você não se cala?" que gelou a cimeira mas aqueceu meu coração. A grosseria de Chávez só pode ser tratada a tapas e pontapés. Juan Carlos fez um favor a Espanha e, tragicamente, um favor aos venezuelanos.

Começou por fazer mais um favor a Espanha, dos vários que lhe fez com inaudita coragem. Digo "inaudita" porque nada faria prever que Juan Carlos fosse, como de fato foi, personagem central na consolidação da democracia espanhola. Como é possível que um homem talhado para seguir o autoritarismo de Franco tenha sido crucial no período de transição pós-franquista? Provavelmente, por ter entendido que a Espanha mudara em 1970; e que a mudança exigia desmantelar o regime, convocar eleições livres e elaborar uma constituição democrática, a única forma de garantir a unidade do país contra todas as tentativas de fechamento ditatorial. A democracia espanhola e o espantoso crescimento dos meus vizinhos tiveram em Juan Carlos uma referência e um precursor. Até hoje.

Mas Juan Carlos não foi apenas precioso para os espanhóis: ao calar a boca de Hugo Chávez, Juan Carlos também falou em nome dos próprios venezuelanos. Sobretudo daqueles que Chávez manda calar com a sua "Lei da Responsabilidade Social" (belo eufemismo), uma medida literalmente fascista que garante prisão (até 20 meses) para todos aqueles que tenham a ousadia de criticar o presidente.

Uma ousadia que será agravada criminalmente quando a reforma constitucional for aprovada em referendo no próximo mês. Ao permitir a Chávez um reino vitalício e armado, a nova constituição "bolivariana" colocará nas mãos de um caudilho autoritário os frutos do quinto maior produtor de petróleo do mundo. Será um caminho sem retorno para uma Venezuela silenciada e empobrecida, com crime galopante e, ao contrário do que pensam os crentes, com desigualdades sociais que a caridade do Estado, longe de suprimir, acabará por cavar mais fundo ao destruir qualquer possibilidade de investimento e criação de riqueza.

"Por que você não se cala?", perguntou o rei ao novo bobo da corte. O novo bobo não se cala porque, ao contrário dos antigos, ele gosta de montar o circo para esconder, e não para revelar, as mais tristes verdades.

João Pereira Coutinho é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Record). Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.

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