Pensata

João Pereira Coutinho

14/04/2008

Lisboa Connection

1º de abril

Parece mentira, sobretudo no dia dedicado a elas. Não é. Mudo de casa e conheço a vizinha em circunstâncias atípicas: ela, vestida; eu, nem por isso. Como foi que o encontro aconteceu? Durante séculos, pais e avós ensinavam os filhos e os netos a bater antes de entrar. A minha vizinha, que provavelmente já tem netos, não teve pais nem avós.

Na noite anterior, depois de jantar generoso, entrei em casa e encostei a porta, na crença sincera de que a trancara. Não tranquei. Encostei. A vizinha, ao ver a porta entreaberta na manhã seguinte, resolveu investigar se havia ladrões no prédio. Não havia. Como a casa é um pequeno estúdio, com cama ao centro, a prestável senhora encontrou apenas o presente cronista, tão inocente como veio ao mundo, dormindo um sono pueril.

Houve um ligeiro grito (dela). Houve um acordar violento (meu). Erguendo o tronco, encontrei a benemérita literalmente aos pés do leito, ruborizada como um bife tártaro, com os olhos postos onde Adão e Eva não encontravam pecado (antes da maçã). E, sem os desviar, ainda perguntou se a porta era para fechar. Esmerado como sou, agradeci a gentileza e a porta fechou-se. Do outro lado, risos insanos e a frase abismada "Tu não vais acreditar no que eu acabei de ver" (provavelmente, falando ao celular) deram o golpe final no meu sono moribundo.

O bairro promete.

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2 de abril

Números aterradores. Leio na revista do "Financial Times" que os centenários crescem 6% ao ano. Para sermos mais específicos, em 1911 havia 400 centenários na Grã-Bretanha. Em 2006, 9 mil. Em 2031, serão 40 mil. As mulheres ainda levam vantagem sobre os homens (7 para 1) mas a distância será encolhida no futuro. Devemos festejar?

Depende. Se o tempo em que vivemos tratasse bem dos seus velhos, talvez o momento exigisse uma garrafa de champanhe. Mas o nosso tempo abomina os velhos e, por oposição, eleva o corpo, a saúde e a juventude a patamares verdadeiramente obscenos. Os velhos crescem de ano para ano. Mas, de ano para ano, a cultura adolescente vai contaminando tudo em volta.

Esse paradoxo gera uma pergunta inquietante: para quê viver mais se aos olhos do nosso tempo é um crime viver demais? Infelizmente, as pessoas já não lêem os Clássicos. Como, por exemplo, Ovídio. Se lessem, saberiam que não vale a pena pedir a imortalidade se a juventude eterna não vem no mesmo pacote.

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3 de abril

Um amigo brasileiro grava em DVD e empresta-me os 15 anos de "Manhattan Connection". Não sei por que motivo o programa desapareceu das televisões portuguesas. Ou, pelo menos, da minha televisão portuguesa. Pena. A sofisticação, a inteligência e a informalidade do programa eram a melhor forma de fechar as segundas-feiras.

Verdade que a morte de Paulo Francis deu um golpe profundo ao projeto. Desde logo porque Francis, jornalista de génio, era também um ator de génio, que transformava o "Manhattan" em palco teatral para divertir, indignar e até cantar. Sobretudo as óperas "populares" de Mozart e alguns temas de Gershwin (recordo um "I Got Rhythm" que não envergonhava ninguém). Foi-se o Francis e quem ficou?

Tenho todo o respeito pelos rapazes e faço uma vénia a Lucas Mendes, que no programa especial entrevista alguns anónimos na av. Paulista sobre o "Manhattan" e descobre que os paulistanos, apesar de não conhecerem o melhor programa da sua televisão, não se furtam a dissertar sobre ele. Mas a minha preferência, hoje e sempre, vai para Lúcia Guimarães, uma Meryl Streep brasileira que melhora de ano para ano em elegância, curiosidade cultural e uma certa serenidade altiva que é possível encontrar nas melhores personagens de Balzac.

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4 de abril

Os meus amigos não dispensam o psicanalista. Uma vez, duas vezes por semana. Um deles é incapaz de tomar uma decisão, qualquer que ela seja, sem telefonar primeiro ao confessor. Como explicar tudo isto?

O poeta Philip Larkin resumiu o problema em "This be the verse", a composição poética que lhe custou o título de "Sir" pelo uso de linguagem chula nos primeiros versos. Injusto, Majestade. Com "They fuck you up, your mom and dad", Larkin não se limitava a explicar a forma como os pais tendem a arruinar a vida dos filhos; Larkin vai mais longe e explica que a culpa não é inteiramente dos pais: eles limitaram-se a ter a vida arruinada pelos avós, e os avós pelos bisavós, e por aí fora. Mas arruinada com quê?

Com as expectativas envenenadas que os pais tendem a colocar sobre a descendência, sobretudo na vulgar sociedade meritocrática em que vivemos. Olho para os meus amigos, alguns deles pais. E não deixa de ter o seu encanto a forma como eles usam os filhos para compensar frustrações privadas. As crianças não são crianças, destinadas a crescer, aprender, acertar, falhar e, sobretudo, procurar. São antidepressivos que servem para aliviar os fracassos dos progenitores: se os pais não ganharam o Nobel, eles esperam ansiosamente que os filhos cumpram a missão. O bom nome da família depende disso.

E o cenário tende a piorar, segundo Adam Philipps, um conhecido psicanalista britânico que, além de cultura literária suprema, tem a honestidade de não apresentar a "felicidade" como artigo de marketing. Em texto para a revista "Prospect", Phillips critica a ambição do governo inglês (e, a prazo, dos vários governos europeus) em ensinar "Felicidade" como disciplina escolar. Para Phillips, ainda que a "Felicidade" fosse matéria ensinável (obviamente, não é), aulas de "Felicidade" acabariam por gerar resultados perversos, sobretudo entre os alunos mais "relapsos". A ideia totalitária de que só vidas felizes valem a pena ser vividas transforma os "infelizes" numa nova classe de leprosos morais.

Para Philipps, uma vida educada não serve para nos tornar mais felizes. Serve apenas para que as pessoas possam suportar a infelicidade e receber o seu oposto quando ele acontece. Mas quem está disposto a este programa mais modesto? Não os meus amigos. Eles correm para o psicanalista ao mesmo tempo que preparam os filhos para os psicanalistas de amanhã.

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6 de abril

Que miséria: morreu Charlton Heston. A última vez que vi o homem foi em filme de Michael Moore, "Bowling for Columbine/ Tiros em Columbine". Relembro: Moore, no seu analfabetismo boçal, pretendia mostrar a relação direta entre posse de armas e massacres escolares nos Estados Unidos. Charlton Heston, como presidente da National Rifle Association, organização que defende o direito constitucional à posse de armas, era alvo a abater, depois de longa demonização no ecrã.

Moore compareceu na casa do homem, que o recebeu com intocável gentileza. Sentaram-se para a entrevista, Moore iniciou as suas "perguntas" (tradução: julgamento e fuzilamento sem direito a defesa) e Heston, sem perder a compostura, levantou-se e saiu de cena ao perceber a intenção desonesta do bicho. Moore sorriu para a câmara (vitória! vitória!) e na sala de cinema o auditório aplaudiu em delírio.

Perdoo-lhes, porque eles não sabem o que fazem. Para começar, a relação direta entre posse de armas e execução de crimes é desmentida pelos fatos: como lembra Mick Hume, colunista da "Slate", Israel e a Suíça têm percentagens mais elevadas de posse de armas e taxas de homicídio mais baixas. E o inverso também acontece: o México e as Filipinas levam o controle a sério, mas a vida é ainda mais barata por aquelas bandas. Não que eu defenda a liberalização total da venda de armas (não defendo), mas a desonestidade é cansativa e repulsiva.

Mas o que custou no aplauso do auditório foi uma certa ignorância sobre o papel de Heston na história do cinema. Falo do trabalho com Orson Welles, em "A Touch of Evil/ A Marca da Maldade"; a colaboração com Nicholas Ray em "55 Dias em Peking". E falo dos filmes óbvios porque os filmes óbvios são grandiosos, mesmo, ou sobretudo, com a megalomania um pouco "kitsch" que os define: como esquecer Ben-Hur, na corrida das quadrigas? Como esquecer Moisés, dividindo as águas e conduzindo o povo eleito? Sobre "Os Dez Mandamentos", aliás, a memória é pessoalíssima: foi o primeiro filme que vi nas telas (teria uns seis anos) e recordo instintivamente a sequência em que a morte desce sobre o Egito para levar todos os primogénitos. Quem diria que a morte era assim, pensava eu na cadeira do cinema, um nevoeiro denso que cai sem aviso sobre os homens?

Ainda hoje tenho um certo temor do nevoeiro.

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9 de abril

O problema do progresso é a sua hostilidade ao hábito: uma pessoa adapta-se à mudança, investe na mudança - e certo dia descobre que ninguém usa mais grafonola. Ou cassette VHS, é igual: ambas são peças de museu para mostrar aos netos. Exatamente como as fotos Polaroid.

Sou amante da tecnologia, confesso, e fui coleccionando umas centenas de Polaroids, tiradas em todos os sítios e circunstâncias. Gostava sobretudo de esperar que os rostos emergissem do nada, meras assombrações humanas, para depois acrescentar, como legenda ou explicação, uma data, uma palavra, um comentário. Nada era mais literário do que uma Polaroid.

Descubro agora que a festa acabou: a Polaroid, que nasceu depois da Segunda Guerra e foi musa do movimento Pop, não resistiu à era digital. Para quê esperar um minuto ou dois se é possível ter fotos digitais no próprio segundo? Além disso, explicam os especialistas, as fotos digitais são duráveis, ao contrário da imagem das velhas Polaroids: os traços, as cores, tudo desaparece com tempo.

Pois desaparece. Mas, de certa forma, era também por isso que eu gostava delas: as Polaroids não se limitavam a fixar rostos ou lugares; elas também sabiam acompanhar a própria memória humana, na sua fragilidade e esquecimento. Quem, no fundo, deseja lembrar sempre e sempre e sempre? Jorge Luis Borges tinha inteira razão: as memórias inapagáveis são o pior dos suplícios.

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11 de abril

Herdei vários traços do meu avô. Os olhos, a pele clara, o cabelo ondulado. Mas nenhum me orgulha tanto como a tendência permanente para falar sozinho. Ainda não atingi o patamar dele, é certo: o meu avô tinha várias conversas, a várias vozes e com vários personagens, normalmente em salas de tribunal imaginárias. Havia verdadeiros enredos, com testemunhas histéricas e réus injustamente condenados, que eu escutava, fascinado e às escondidas, juntamente com a família amedrontada.

Mas faço o que posso: uma ou outra entrevista aqui e ali; actuações operáticas no Radio City Hall; e o hábito, desagradável para terceiros, de elaborar sistemas metafísicos enquanto caminho pela rua. A rua costuma parar, espantada; os mais velhos benzem-se e apressam o passo.

Um erro. Cientistas britânicos, em artigo para a "Early Childhood Research Quarterly", chegaram à conclusão que as crianças que falam sozinhas normalmente conseguem executar tarefas com maior proficiência. Esta espécie de treino mental, se exercitado ao longo do crescimento, pode também dar frutos na idade adulta, permitindo racionalizar problemas e verbalizar soluções de forma clara e ordenada.

Nada que eu não soubesse já. Digo mais: no dia em que arranjar secretária suficientemente ágil de dedos e liberal de cabeça, passarei a ditar as minhas crónicas diretamente da cama, como Churchill fazia com seus discursos.

Pensando bem, talvez a minha vizinha seja a pessoa certa para o trabalho.

João Pereira Coutinho é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Record). Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.

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